Discurso


/ Atualizado em 21.09.2007

Portugal - a experiência portuguesa de uma legislação única para radiodifusão e telecomunicações

Alberto Souto de Miranda
Vice-Presidente da ANACOM

Exmos. Senhores

1. É com enorme prazer que me encontro hoje aqui, em representação da ANACOM, nesta Conferência Nacional Preparatória de Comunicações e integrado no painel sobre o presente e o futuro das políticas de comunicação.

A ANACOM e a ANATEL têm sabido manter relações bilaterais constantes e profícuas, com aprendizagem mútua das respectivas experiências e resultados e cooperação muito activa nos fóruns internacionais. Devemos congratular-nos com isso: a construção comum da História e da língua já o explicariam com naturalidade, mas um futuro como este, sem fronteiras e cada vez mais inesperado, recomendam-no vivamente. Nas tempestades dos tempos é uma vantagem competitiva cerrar as amarras que nos unem.

Os nossos povos sentem-se irmãos, os nossos Estados sentem-se amigos, o futuro ganha-se seguramente melhor entre amigos e irmãos.

E não é apenas retórica diplomática o que estou a aludir. Como é sabido, Portugal tem tido um presença muito significativa no mercado de telecomunicações brasileiro, através da participação do grupo da Portugal Telecom na VIVO e temos sabido unir esforços nas diferentes instâncias internacionais - designadamente na UIT e na CPLP para apoiarmos reciprocamente os nossos interesses.

A partilha das nossas experiências regulatórias, da forma como nacionalmente acompanhamos a alucinante evolução do mercado e da nossa visão sobre os novíssimos horizontes, que ainda apenas se vislumbram e logo se tornam nas urgências do dia a dia, quando não obsoletos, num frenesim inovador que não dá descanso aos reguladores, nem aos paradigmas comunicacionais, representa, pois, uma importante oportunidade de enriquecimento mútuo.

Portugal tem muito para aprender com o Brasil e o Brasil pode avaliar o contributo que lhe podemos dar, na qualidade de parceiro europeu privilegiado e à nossa escala de pequeno laboratório de vivências, às vezes tecnológica e socialmente de excelência.

Cumprimento, pois, o Sr. Ministro das Comunicações, agradecendo-lhe o muito honroso convite e os promotores desta Conferência; e permitam-me que deixe uma saudação muito especial para a ANATEL e para o seu Presidente, o Senhor Embaixador Ronaldo Mota Sardenberg, a quem desejo as maiores felicidades no cargo em que recentemente foi investido. Conte sempre com a nossa colaboração e disponibilidade no aprofundamento das relações de amizade que as nossas instituições têm sabido manter.

2. A dupla regulação sobre os operadores de comunicações

Encontro-me numa situação delicada: devo palestrar sobre um quadro normativo único para radiodifusão e as telecomunicações, quando, na verdade, a realidade é um pouco diferente. Em Portugal temos o ICP-ANACOM, entidade reguladora das telecomunicações, mas também temos, desde há pouco tempo, uma Entidade Reguladora da Comunicação Social - ERC (desde finais de 2005) e uma legislação sobre a televisão que ainda agora foi publicada (Julho de 2007). Situação paradoxal: quando caminhamos para a convergência, Portugal aposta em modelos não unificados de regulação e apresenta uma dupla tutela para a radiodifusão e as telecomunicações. Por um lado, temos a Lei das Comunicações Electrónicas (LCE) e um decreto-lei sobre radiocomunicações, cuja aplicação compete à ANACOM; por outro, existem as Leis da TV e da Rádio, cuja aplicação compete genericamente à ERC.

Ou seja, as empresas que tradicionalmente identificamos como sendo da área da comunicação social (agências de notícias, imprensa e publicações periódicas convencionais, operadores de rádio e de televisão), bem como outras não tão evidentes - como sejam os operadores de distribuição por cabo, os operadores móveis ou os responsáveis pelos sítios informativos -, ficam sob jurisdição da ERC. Mas, na medida em que sejam titulares de direitos de utilização de frequências ou de redes de comunicações electrónicas ficam igualmente, nessa parte, sob a jurisdição da ANACOM.

É evidente porém que as duas entidades, a que se deve acrescentar a Autoridade da Concorrência, têm de cooperar entre si, apesar da diversidade dos objectivos regulatórios. A ERC regula a relação dos conteúdos com o público, numa óptica de defesa do livre acesso à produção e consumo, e da protecção dos direitos fundamentais da cidadania. A ANACOM regula a relação dos cidadãos com o acesso às redes, às frequências e à numeração e a promoção da concorrência. Uma, mais o acesso e os efeitos dos conteúdos; outra, mais o acesso e os efeitos da gestão de redes; enfim, a Autoridade da Concorrência, regula as práticas restritivas e o abuso de posição dominante, quer no mercado de conteúdos e da radiodifusão, quer no mercado das telecomunicações não regulados sectorialmente.

É por isso que, apesar de serem substancialmente diferentes os objectivos de regulação das duas entidades, a sua prossecução implica uma cooperação activa entre elas: serve de pouco à ANACOM pugnar pela defesa da concorrência no acesso às plataformas, se nada se fizer para evitar monopólio no mercado de conteúdos e vice-versa: de pouco servirá à ERC defender o pluralismo nos serviços se houver monopólio nas redes de acesso?

3. A regulação unitária das redes e das frequências

Não obstante a dupla regulação em função da matéria, Portugal mantém uma regulação convergente e unitária dos mercados de redes e do espectro. Na verdade, a LCE aplica-se a todos os meios de comunicações electrónicas (frequências do espectro radioeléctrico e infra estruturas e meios físicos), independentemente do fim a que se destinam ou dos serviços que neles se suportam.

Dois exemplos para ilustrar: um dos ''mercados relevantes'' de telecomunicações para efeitos de regulação sectorial ex-ante, definido a nível europeu pela Comissão Europeia, é o mercado dos serviços de radiodifusão para a entrega de conteúdos difundidos a utilizadores finais - o mercado 18 da Recomendação. A ANACOM terminou recentemente a análise, tendo concluído pela existência, como mercado relevante, do mercado grossista de difusão televisiva através da rede analógica e pela existência de PMS por parte da PT Comunicações, impondo-lhe obrigações de acesso, transparência, não discriminação e de separação de contabilidade. Ou seja: o acesso ao mercado de plataforma analógica terrestre de transporte de sinal é regulado pela ANACOM.

Outro exemplo: ainda recentemente, o processo de renovação das licenças de TV dos dois operadores privados (SIC e TVI) teve que correr paralelamente em duas sedes: a ANACOM analisou e decidiu renovar o direito de utilização das frequências e a ERC renovou as licenças para a actividade de televisão propriamente dita. Ou seja: os direitos de utilização de frequências dos operadores de televisão são regulados pela ANACOM.

Em síntese: a regulação das infra-estruturas e das redes de comunicações electrónicas, bem como a gestão do espectro, competem à ANACOM; mas os agentes de radiodifusão que utilizam aqueles meios têm de conviver ainda com a competência específica da ERC, no que respeita aos conteúdos. Ao contrário do que acontece em alguns países da União Europeia, em Portugal a gestão do espectro é, pois, integrada com a regulação das infra-estruturas e das redes. Esta integração permite uma acção eficaz na garantia da compatibilidade entre os diferentes serviços em faixas de frequências adjacentes e melhor avaliar as necessidades dos novos serviços, tudo beneficiando do indispensável contexto de coordenação internacional no quadro da UIT.

Acresce, nos tempos que correm, de convergência progressiva e concorrência entre as plataformas fixas, móveis e os nóveis, e os desenvolvimentos actuais existentes na Europa relativamente ao estabelecimento do novo quadro regulamentar, que esta gestão vai ao encontro destas tendências. A evolução aponta para gradual neutralidade tecnológica e de serviços que abrangerá não só os serviços rádio como os serviços de comunicações electrónicas.

Nesta perspectiva, até as faixas que originalmente eram exclusivas da radiodifusão tenderão a ser partilhadas com outros serviços sempre que tal situação se torne viável do ponto de vista técnico e de disponibilidade espectral. Esta situação obriga ao conhecimento detalhado das necessidades espectrais dos vários serviços, com um estabelecimento claro do valor económico e social em jogo.

A realidade do mercado português evidencia este grande pulsar convergente: temos já neutralidade tecnológica (com a net e a banda larga a serem oferecidas por ADSL, cabo, satélite, rede móvel e outras), e neutralidade de serviços (com as frequências atribuídas em exclusivo para o serviço móvel a ser utilizadas para a prestação de serviços fixos ou semi-fixos) e convergência entre o fixo e o móvel e entre a rede de cobre e a rede de cabo (com ofertas de ''triple play'' - televisão, telefone e Internet - no cobre e televisão e net no móvel. E admitimos, no Quadro Nacional de Atribuição de Frequências 2007, o ''refarming'' do espectro, i.e. a possibilidade de os operadores móveis poderem vir a utilizar as faixas de 900, actualmente utilizadas para o GSM, para o UMTS.

4. A gestão do espectro, a nova lei da Televisão e o concurso para a Televisão Digital

O ''switch off'' da televisão analógica está previsto na Europa para 2012. É já amanhã. E agudizam-se as reflexões sobre o uso a dar ao dividendo digital decorrente da utilização mais eficiente do espectro permitida pela tecnologia digital, designadamente sobre a generalização da televisão nos telemóveis e novos serviços multimédia. É neste horizonte que Portugal está agora a lançar o concurso para Televisão Digital, a exemplo do que tem sucedido em toda a Europa.

A recentíssima Lei da TV veio alterar profundamente o enquadramento e o acesso à actividade. À ANACOM continua a competir a planificação e a atribuição de frequências, mas é preciso agora distinguir: se se tratar de acesso a actividade de TV paga (de acesso condicionado ou não condicionado com assinatura - art.16º), o Governo - através de portaria conjunta - abre concurso para a atribuição de frequências e para a actividade de televisão; na sequência desses concursos, a ANACOM atribui os direitos de utilização e a ERC atribui a licença de actividade. Se se tratar de acesso à actividade televisiva gratuita (de acesso não condicionado livre - art. 15º), o Governo - através do responsável para a Comunicação Social abre o concurso para o licenciamento da actividade e a ERC atribui a respectiva licença, cabendo à ANACOM abrir o concurso para as frequências e atribuição de respectivos direitos.

5. A gestão do espectro e a defesa da concorrência

A experiência tem ensinado que a gestão do espectro pode constituir um importante factor regulatório. Desde logo através do processo de atribuição em que devem ser garantidas condições de igualdade de oportunidades, transparência e equidade, sobretudo quando ele é escasso. Por exemplo, se atribuímos portadoras UMTS para o mercado dos móveis, por concurso público e preço relevante, poderemos, mais tarde, abrir esse mercado móvel a quem já detém outras frequências, para outros serviços e não foi ao concurso? Se a promoção da concorrência o aconselhar será que não o deveremos fazer, sob pena de cristalizarmos o mercado, fechando-o assim, em nome de uma igualdade meramente formal, aos pequenos operadores?

E quando se verifica que os operadores não estão a utilizar efectivamente o espectro que lhes foi consignado, não deveremos exigi-lo de volta, sob pena de preempção de um bem público, apenas com intuito de impedir o acesso de terceiros ao mercado?

E o comércio secundário do espectro pode ser livre? Mas a livre fixação do preço por transmissão não pode significar uma barreira à entrada?

São tudo questões suscitadas recentemente pelo mercado português, muito competitivo, como se sabe.

6. A regulação das telecomunicações e a promoção da banda larga

Não já na sua veste de guardião do espectro, mas na de regulador face ao operador histórico, o ICP-ANACOM tem sido particularmente activo e eficaz na implementação de condições que permitem assegurar o desenvolvimento dos serviços de banda larga em Portugal, nomeadamente através da imposição, ao operador dominante, de medidas de preços grossistas ADSL ''retalho menos'' e da contínua redução dos preços da oferta desagregada do lacete local.

Outra medida regulatória importante e pioneira a nível mundial foi a regulação das condições de acesso às condutas e infra-estrutura associada da concessionária1 pelos restantes operadores, nomeadamente em termos de preços orientados para os custos, acesso não discriminatório e condições técnicas eficientes.

Esta medida, consubstanciada numa oferta de referência de acesso às condutas da concessionária, tem assim contribuído para que todos os operadores possam investir eficazmente em todo o território, promovendo a concorrência e o desenvolvimento de serviços convergentes e evitando a duplicação ineficiente de infra-estruturas.

Assim, a actuação regulatória tem apresentado resultados crescentemente visíveis, nomeadamente em termos do célere crescimento da penetração da banda larga, o qual rondou cerca de 16% entre o 2º trimestre de 2006 e o 2º trimestre de 2007.

De acordo com dados do INE de 2006, a percentagem de lares com banda larga em Portugal (53%) é superior em um ponto percentual à média da UE.25. No entanto, caso se compare a penetração da banda larga por cada cem habitantes do 2º trimestre, Portugal apresenta valores ainda aquém (14,7 %) da média da UE a 15 (18,6%). No entanto, se for tido em conta o acesso à banda larga propiciado pelos móveis, Portugal aproxima-se mais 1,6%.

Também no tocante aos preços a evolução dos preços tem sido positiva, sendo que nas ofertas de 4 Mbps - as mais representativas, abrangendo mais de 40% dos utilizadores - Portugal apresenta mensalidades médias inferiores a países como a Alemanha, Reino Unido, Dinamarca, Espanha, Áustria, Bélgica e Irlanda.

7. Portugal na senda da Sociedade da Informação

O alucinante ritmo da sociedade da informação oferece importantes oportunidades, mas exige urgentes respostas do Estado, das empresas e dos cidadãos e coloca novos desafios aos reguladores. Desaparecem as periferias geográficas, onde novas centralidades de conhecimento podem emergir, mas também há riscos de novas iliteracias digitais. O capital conhecimento e acesso a informação é cada vez mais decisivo na economia do futuro. Portugal percebeu isso bem e tem desenvolvido políticas públicas em consonância com essa estratégia.

E deve reconhecer-se que, nos anos mais recentes, o sector das comunicações conheceu um enorme desenvolvimento em Portugal e a utilização de serviços de teledifusão, telefonia e transporte de dados está hoje generalizada nas diferentes camadas da população. Portugal está com uma taxa de penetração de telemóveis superior de 112% da população, embora sejam ainda possíveis melhorias em termos de desempenho e acessibilidade.

Mas é reconfortante para um português, habituado a figurar nas piores estatísticas sobre a burocracia e a ineficiência administrativa do Estado e constitui motivo de orgulho, poder ver retratos internacionais de um País diferente: de acordo com a listagem Global e-Government2 ainda este mês publicada pela Universidade de Brown, a qual mede o grau de desenvolvimento do governo electrónico em cento e noventa e oito países, Portugal passou do 48º para o 7º lugar, a nível mundial e do 16º para o 2º lugar a nível europeu, ficando apenas atrás do Reino Unido. É notável.

Esta evolução bastante significativa deve-se, em larga medida, ao impacto positivo do Plano Tecnológico (em especial por intermédio dos seus pilares ''Simplex''3 e ''Ligar Portugal''4) consubstanciado nomeadamente em progressos no número de serviços disponibilizados através da Internet. Em 2007, 60% dos impostos das famílias já são pagos pela Internet. Uma sociedade comercial pode constituir-se na hora e ''on line''. O bilhete de comboio pode adquirir-se pela net e pelo telemóvel. As compras públicas fazem-se por E-procurement. O Diário da República é electrónico. Certificação digital. Passaporte Digital. Portagens cobradas virtualmente nas auto-estradas, Cartão do Cidadão. Lojas do Cidadão integrando repartições públicas de diferentes tutelas. É um admirável mundo novo na Administração pública.

Mas não basta o segundo melhor E-governement da Europa. Importa também uma boa E-sociedade e, para os dois, uma E-escola generalizada em banda larga. Portugal não alcançou ainda a meta da média europeia. A razão parece ser económica e cultural. O preço dos computadores e da banda larga ainda pesa no orçamento de muitas famílias. Por isso, o Governo desencadeou um ambicioso programa de distribuição de PC a alunos e professores (gratuitamente para os alunos da acção social no 10º ano de escolaridade, 150 € para os outros) e de acesso a banda larga em condições especiais (menos 5 €/mês do que a oferta comercial) e no quadro de um acordo com os principais operadores de telemóveis UMTS.

8. Os próximos desafios da convergência

No futuro próximo Portugal estará confrontado com alguns desafios. Em primeiro lugar, a separação da gestão das redes do operador histórico: a rede de cobre e a rede de distribuição de televisão por cabo (o chamado Spinn-Off da PT Multimédia), processo que deverá estar ultimado até ao fim do ano. Dela advirá acrescida concorrência entre as plataformas, a generalização das ofertas ''triple play'' e maior acessibilidade de preços.

Em segundo lugar, a implementação das chamadas ''Next Generation Networks'' (Redes de Próxima Geração), que, com as potenciais reduções significativas de custos operacionais dos operadores, a maior integração de serviços e aplicações, a emergência de novas normas da indústria a estes associada e as maiores larguras de banda, podem constituir uma nova etapa na sociedade do conhecimento e da info-inclusão, maximizando o acesso dos cidadãos, das empresas e das instituições.

Enfim, a designação do prestador do serviço universal, a televisão digital e o novo quadro regulatório europeu, onde se fala já na criação de uma Autoridade Europeia de Regulação, tudo isso vai exigir da ANACOM uma regulação de proximidade, justa, transparente e equilibrada, sempre em prol do livre acesso dos cidadãos, esclarecida e apoiada nas experiências dos nossos parceiros privilegiados, como é o Brasil.

Navegar é preciso, dizia a canção brasileira. Navegar (na net) é cada vez mais preciso. Para viver melhor. Para que mais possam viver melhor.

Muito Obrigado, por isso, por esta oportunidade.
Desejo os maiores sucessos a esta Conferência.

Brasília, 18 de Setembro de 2007

Notas
nt_title
 
1 Ver Acesso às condutas da PT Comunicaçõeshttps://www.anacom.pt/render.jsp?categoryId=126419.
2 Ver Global E-Government, 2007http://www.insidepolitics.org/egovt07int.pdf.
3 Ver Programa Simplex 2007http://www.portugal.gov.pt/pt/Documentos/Governo/PCM/Programa_Simplex_2007.pdf.
4 Ver Ligar Portugalhttp://www.ligarportugal.pt/ .


Consulte: