A licença T-DAB da RTP enquanto direito de utilização de frequências
A licença T-DAB da RTP enquanto direito de utilização de frequências
Por despacho de 11 de Fevereiro de 1999, do então Ministro do Equipamento, Planeamento e da Administração do Território (MEPAT), proferido nos termos do n.º 2 do artigo 17º do Regulamento do Concurso anexo à Portaria n.º 470-B/98, de 31 de Julho, e na sequência do concurso para a atribuição de uma licença, de âmbito nacional, para o estabelecimento e fornecimento de uma rede de radiodifusão sonora digital terrestre, T-DAB, que assegure a realização de uma cobertura de âmbito geral, foi atribuída a referida licença à Radiodifusão Portuguesa, S.A. (RDP), actualmente, RTP, para utilização da faixa de frequências 224,880-226,416 MHz.
Nos termos do artigo 14º do, já revogado, Decreto-lei n.º 381-A/97, de 30 de Dezembro, e ao abrigo do n.º 1 do artigo 19º do Regulamento do Concurso, o ICP-ANACOM, em 8 de Junho de 1999, emitiu o respectivo título de licenciamento.
Dispunha o artigo 3º do referido Decreto-Lei n.º 381-A/97 que "os actos de registo e a atribuição de licenças competem ao Instituto das Comunicações de Portugal (ICP), salvo quando envolvam a atribuição de frequências no âmbito de concurso, cabendo, neste caso, ao membro do Governo responsável pela área das comunicações a atribuição das licenças".
O MEPAT atribuiu assim à, então, RDP uma licença para a utilização de frequências T-DAB na faixa dos 224,880-226,416 MHz, homologando a proposta de atribuição da Comissão nomeada para, designadamente, elaborar a lista classificativa das propostas apresentadas ao respectivo concurso público, conforme previsto no artigo 17º do Regulamento do Concurso aprovado em anexo à Portaria n.º 470-B/98, de 31 de Julho.
Foi, pois, o membro do Governo responsável pela área das comunicações o autor do acto administrativo, traduzido na atribuição de uma licença à RDP.
Em 2004 entrou em vigor a Lei das Comunicações Electrónicas (Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro - LCE) que veio estabelecer o regime jurídico aplicável às redes e serviços de comunicações electrónicas e aos recursos e serviços conexos e definir as competências da autoridade reguladora nacional nesse domínio, revogando expressamente, entre outros, o citado Decreto-Lei n.º 381-A/97.
Nos termos do regime em vigor, a oferta de redes e serviços de comunicações electrónicas, acessíveis e não acessíveis ao público, está sujeita ao regime de autorização geral, o qual consiste no cumprimento das regras previstas na LCE e nos regulamentos aprovados pelo ICP-ANACOM em sua execução.
Adicionalmente, a utilização de frequências está dependente da atribuição de direitos de utilização, na medida em que tal esteja previsto no Quadro Nacional de Atribuição de Frequências (QNAF). Nos termos do artigo 16º da LCE compete ao ICP-ANACOM publicar anualmente o QNAF, o qual deve conter, nomeadamente, as faixas de frequência e o número de canais já atribuídos às empresas que oferecem redes e serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público, incluindo a data de revisão da atribuição.
Neste contexto, desde Maio de 2005 (data da primeira publicação do QNAF na vigência da LCE 1), que a RDP figura, no capítulo da publicitação das utilizações (vd. pág. 159), como detendo um direito de utilização de frequências, na faixa 224,880-226,416 MHz, para o serviço de radiodifusão sonora digital por via terrestre (T-DAB), o que se mantém, naturalmente, na actual versão do QNAF, apenas com a alteração para RTP.
Assim sendo, não obstante o ICP-ANACOM não ter procedido oficiosamente à reconfiguração da licença T-DAB da RDP, conforme prevê o artigo 121º da LCE, dúvidas não subsistem que no actual quadro legal a, ora, RTP é titular de um direito de utilização de frequências, cujo prazo termina a 8 de Junho de 2014, conforme previsto no QNAF.
A comunicação da RTP configura assim um pedido de revogação do acto de atribuição do, agora, direito de utilização de frequências, ou seja, a revogação de um acto administrativo válido.
Revogação de actos administrativos válidos - competência do ICP-ANACOM para a revogação e interessados
É, assim, à luz do regime da revogação de actos administrativos válidos, previsto no Código do Procedimento Administrativo (CPA), que o presente pedido deve ser analisado. Esta figura consiste numa «decisão administrativa dirigida à cessação dos efeitos de outra decisão administrativa prévia, por se entender que os efeitos desta não são convenientes, não representam uma maneira adequada de prosseguir o interesse público em causa (…)».
O CPA dispõe no seu artigo 140º que os actos administrativos são livremente revogáveis excepto i) quando a sua irrevogabilidade resultar de vinculação legal, ii) forem constitutivos de direitos ou iii) deles resultem para a administração obrigações legais ou direitos irrenunciáveis. No caso de os actos serem constitutivos de direitos, como é aqui o caso, os actos só podem ser revogados na parte em que forem desfavoráveis aos interesses dos destinatários ou quando todos os interessados derem a sua concordância à revogação e não se trate de bens indisponíveis.
Antes de mais importa saber qual é a entidade competente para proceder à revogação do acto.
Nos termos do n.º 1 do artigo 142º do CPA, na ausência de disposição especial que atribua a entidade diversa competência para o efeito, é competente para a revogação de um acto administrativo o seu autor. No entanto, no actual regime legal a atribuição de direitos de utilização de frequências compete ao ICP-ANACOM (vd. art. 19º, n.º 3 e 36º da LCE) 2, ou seja, cabe hoje ao ICP-ANACOM o poder de atribuir os direitos de utilização de frequências, mesmo nos casos em que essa atribuição é precedida por um procedimento de selecção, nomeadamente concurso, em que as regras de atribuição são da competência do membro do Governo responsável na área das comunicações. E, sendo assim, cabe também ao ICP-ANACOM o poder de revogar o acto atributivo desse direito 3.
Ou seja, a razão pela qual a lei reconheceu o poder revogatório ao autor do acto administrativo reside na ideia de que a competência revogatória é um mero desenvolvimento da competência dispositiva ou primária. Conclui-se, portanto, que a competência para revogar o acto pertence, actualmente, ao ICP-ANACOM.
No caso vertente o pedido de revogação é da iniciativa da RTP, mas importa apurar se existem outros interessados no sentido implícito do artigo 140º do CPA, ou seja, enquanto titulares de direitos ou interesses legalmente protegidos cuja concordância é necessária para a revogação do acto.
Entende-se que, para efeitos do presente procedimento, os operadores de rádio não são interessados nesta acepção específica, pois não se reconhece que os compromissos assumidos pela RTP na sua proposta, bem como as condições decorrentes da licença, tenham gerado na sua esfera jurídica direitos ou interesses legalmente protegidos, de forma estável, consistente e concreta, que justifiquem a necessidade da sua concordância.
É certo que nos termos da licença ICP n.º 04/1999 a RTP está vinculada a um conjunto de obrigações relativas à disponibilização de acesso e utilização da capacidade da sua rede aos designados radiodifusores T-DAB, incluindo: i) a obrigação de repartição de cada um dos 3 canais secundários pelos radiodifusores DAB em condições de igualdade, não discriminação e proporcionalidade 4; ii) os princípios a que o sistema de preços no âmbito da disponibilização da capacidade da rede T-DAB deve obedecer 5; iii) o preço máximo a cobrar em cada ano de vigência da licença por canal secundário 6; e iv) a obrigação de garantir a transparência e não discriminação no acesso e utilização da capacidade da sua rede por parte dos radiodifusores T-DAB devidamente autorizados, mediante remuneração adequada, nas condições definidas na lei, nos regulamentos de exploração aplicáveis e na licença 7.
Nos termos do Regulamento de exploração das redes de radiodifusão sonora digital terrestre, que estabelecia as regras de oferta comercial pelo operador de rede e da utilização pelos radiodifusores T-DAB das redes de radiodifusão sonora digital terrestre, aprovado pela Portaria n.º 470-C/98, de 31 de Julho 8, Radiodifusor T-DAB é definido como a entidade legalmente habilitada para o exercício da actividade de radiodifusão sonora e para a transmissão das suas emissões através da rede T-DAB.
E embora o referido Regulamento estabelecesse os direitos (nomeadamente, aceder à rede T-DAB, em condições de igualdade e fiabilidade técnica, através da utilização dos seus canais secundários DAR, nos termos definidos no título que os habilita à utilização daquela rede e respectiva legislação aplicável 9) e obrigações 10 destes radiodifusores, a verdade é que deixou para diploma próprio a fixação das regras de acesso à rede T-DAB pelos radiodifusores (cfr. art. 11º do Regulamento de Exploração).
Consistentemente, a anterior Lei da Rádio (Lei da Rádio Lei n.º 4/2001, de 23 de Fevereiro) previa no seu artigo 22º (emissões digitais) que as licenças detidas pelos operadores de radiodifusão analógica constituem habilitação bastante para o exercício da respectiva actividade por via hertziana digital terrestre, nos termos a definir em legislação específica. E a actual Lei da Rádio (Lei n.º 54/2010, de 24 de Dezembro) mantém disposição idêntica, fixando no artigo 85º (rádio digital terrestre) que as licenças detidas pelos operadores de rádio analógica constituem habilitação bastante para o exercício da respectiva actividade por via hertziana digital terrestre, nos termos a definir em legislação específica.
Ou seja, decorridos que estão quase 12 anos desde a atribuição da licença, nunca chegou a ser estabelecido o regime legal que permitisse definir quem, de entre os operadores de rádio analógica privados (uma vez que, enquanto operador de rede T-DAB, a RTP garante o acesso e utilização da rede pelos três programas de cobertura nacional do serviço público de radiodifusão sonora actualmente concessionado à própria RTP), e em que condições poderia beneficiar deste acesso à rede T-DAB. E embora se possa supor que, dado o âmbito nacional desta rede, seriam beneficiários naturais do acesso os operadores detentores dessa classificação no âmbito da Lei da Rádio, não considera o ICP-ANACOM que se possa concluir que os compromissos da RTP tenham gerado na esfera jurídica dos mesmos direitos ou interesses legalmente protegidos, de forma estável, consistente e concreta e, consequentemente, não os considera como interessados para os específicos efeitos do artigo 140º do CPA.
Numa acepção, mais ampla, de partes interessadas, o ICP-ANACOM reconhece o potencial impacto no mercado da revogação de uma licença, pelo que entende que deve ser promovido o adequado procedimento geral de consulta nos termos do artigo 8º da LCE, permitindo, por essa via, um processo de decisão participado e transparente.
Estabilizado o enquadramento do pedido, importa ter em conta que o acto em causa - de atribuição de direitos de utilização de frequências - se insere na designada categoria de actos favoráveis. Com efeito, está em causa, em primeira linha, a atribuição de uma vantagem, no caso, a atribuição de um direito de exploração de um determinado recurso, que o particular pretende obter no seu interesse e para desenvolvimento de uma actividade económica. Assim, quando confrontado com um pedido de revogação de um acto que atribui uma vantagem a um particular - pedido esse que é obviamente fundado no interesse e nas motivações do respectivo titular - ao ICP-ANACOM compete avaliar se o interesse público cuja realização estava também associada ao acto favorável sai ou não prejudicado pelo deferimento da pretensão do particular.
Neste contexto, a análise e decisão sobre o pedido de revogação basear-se-á em juízos de conveniência e oportunidade, no exercício legítimo de um poder discricionário do ICP-ANACOM, no âmbito do enquadramento legal aplicável.
1 QNAF 2005https://www.anacom.pt/render.jsp?contentId=404770
2 Ao membro do Governo compete aprovar os regulamentos de atribuição de direitos de utilização de frequências sempre que envolva procedimentos de selecção concorrenciais ou por comparação, e se refiram a frequências acessíveis pela primeira vez, no âmbito das comunicações electrónicas ou, não o sendo, se destinem a ser utilizados para novos serviços (art. 35º, n.º 4 da LCE). Nos restantes casos, compete ao ICP-ANACOM aprovar os respectivos regulamentos de atribuição de direitos de utilização de frequências (vd. art. 35º, n.º 5 da LCE).
3 Entendimento, aliás, subjacente a outros actos de revogação de direitos de utilização de frequências por parte do ICP-ANACOM (vd. Revogação da licença FWA da Bragatelhttps://www.anacom.pt/render.jsp?contentId=998580 e Revogação do direito de utilização de frequências FWA da Broadmediahttps://www.anacom.pt/render.jsp?contentId=580042).
4 Cfr. Artigo 6º da Licença.
5 Cfr. Artigo 9º, n.º 1 da Licença.
6 Cfr. Artigo 9º, n.º 2 da Licença.
7 Cfr. Artigo 11º, n.º 1, al. e) da Licença.
8 Portaria n.º 470-C/98, de 31 de Julhohttps://www.anacom.pt/render.jsp?contentId=958694
9 Cfr. Artigo 5º do Regulamento de Exploração.
10 Cfr. Artigo 6º do Regulamento de Exploração.