Intervenção no XIX Fórum da AICEP, 19.05.2011


É um privilégio poder dirigir-me a este XIX Fórum da AICEP. Gostava, em primeiro lugar, de agradecer o honroso convite e de cumprimentar todos os participantes: reflectir sobre as comunicações num espaço multicultural de lusofonia como este, é, sem dúvida, um momento de cosmopolitismo enriquecedor.

Foi-me pedido que vos espicaçasse enquanto “key note speaker”. Seria aparentemente cómodo, se o lema do Fórum não fosse já de si interpelante e o mote que me foi proposto uma imensidão.

Discorrer sobre os “Caminhos de Sucesso num Mundo que já Mudou” e, em especial, sobre “inovação e diversificação” é de alto risco. Não sei se o mundo já mudou. Talvez. Depende do momento de referência e do ângulo de visão. Mas eu acho que ele ainda tem muito para mudar. É essa ansiedade civilizacional de progresso, que não se resigna onde a justiça se denega, que não desarma onde as desigualdades se perpetuam e que não se verga onde as liberdades se coarctam, que continua a dar sentido a alguns ideais e, também, aos prodígios digitais.

Na verdade, o sucesso da ciência é sempre um engrandecimento dos homens. Mas o uso da técnica pode não ser eticamente neutro e ser até humanamente perverso. A História do século XX e também já a do século XXI  está  repleta de exemplos em que nos menorizamos como seres que deviam saber ser com os outros. O mundo mudou muito, pois, nestes dezanove anos de AICEP. Mas quando olhamos para o que conseguimos nas comunicações, devemos corar de vergonha pelo que “desconseguimos” na igualdade dos povos – como diria Mia Couto no seu linguajar criativo. 

No “reality show” “Perdidos na Tribo”, podemos telefonar via satélite e visitar o interior das palhotas. O que não logramos na “realidade real” é reunir as vontades e os gestos para podemos sentar, à volta da fogueira, tantas tribos que andam por aí perdidas nos bairros urbanos das capitais. Os batuques de guerra vão agora por sms. E o troar do inconformismo pode larvar nas consciências, mesmo quando o regulador desliga a internet. O mundo está a mudar nos países árabes. O acesso à internet pode ser fatal para os regimes fechados e cruel para os povos cerceados: porque é uma “webcam” poderosa para a tentação da liberdade: quando a juventude descobre uma sociedade de valores mais tolerantes, de menos ortodoxia de Estado ou de Religião, de mais bem-estar e mais opções, a revolta pode germinar e os sms e as redes sociais convocam todos para as praças.

2. Isto dito, gostava de chamar a atenção sobre a “troika” do momento, em que a inovação e a diversificação têm marcado a nossa agenda: a fibra e as redes de nova geração, a alocação do espectro e a convergência das plataformas. Dizem alguns que o regulador deve ser previsível. Outros que ele se farta de inventar. Outros, ainda, que não inventa tanto como devia. Nem tanto ao mar nem tanto à terra…

A emergência das Redes de Nova Geração trouxe consigo três riscos.

Em primeiro lugar, ao perigo de um retrocesso concorrencial provocado pela alteração da topografia de rede e da passagem à fibra até às casas, e pela cessação abrupta das ofertas de referência do lacete local, respondemos com restrições à desactivação, com períodos de pré-aviso razoáveis e obrigação, em certos casos – nas zonas não competitivas com condutas lotadas -, de oferta de fibra escura. Na ponderação entre a necessidade de promover o investimento e não diminuir a concorrência, encontrou-se um equilíbrio pioneiro que se revelou consistente com a recomendação posterior da União Europeia.

Em segundo lugar, ao risco de a implementação da fibra no terreno se deparar com os tradicionais obstáculos, seja do incumbente, seja da multitude de entidades e regulamentações sectoriais, que podiam minar metas ambiciosas, respondemos com uma legislação inovadora (o DL 123/2009) que – na senda da igualmente pioneira ORAC - veio estipular a obrigatoriedade de todas as entidades públicas detentoras de condutas, tecnicamente capazes de receber fibra, as disponibilizarem.

Assim, as Câmaras Municipais, os Caminhos de Ferro, serviços de água e saneamento, postes de electricidade, auto-estradas rodoviárias, todas potencialmente ficaram abrangidas, além de conectadas e integradas num Sistema de Informação Centralizada, que permitirá, assim se almeja, planear articulada e eficientemente os investimentos. Além disso, foi ainda aprovada regulamentação adequada a intervenções nos edifícios e urbanizações (ITED e ITUR) com salvaguarda da presença de vários operadores.

Em terceiro lugar, à consequência nefasta de se acentuarem as assimetrias regionais, dotando o país litorâneo de auto-estradas de banda muito larga, sem limites de velocidade - mas também sem SCUT-, mantendo o país do interior servido apenas pelas  estradas velhas, lentas e com 256k de velocidade máxima, respondeu o Governo, através da ANACOM,  desencadeando um concurso para instalação de redes de fibra nas Zonas Rurais e Açores e Madeira.  De facto, as redes de nova geração não podiam deixar de fora da rede, parte desta geração. Porque onde não houver Banda Larga, haverá menos empresas e menos emprego. Onde a Banda Larga não chegar, as novas gerações podem perder a rede do futuro.

Foram assim lançados cinco concursos. Abrangeram cento e trinta e nove municípios, onde não existe concorrência a nível retalhista, agrupados em cinco zonas: Norte, Centro, Alentejo e Algarve, Açores e Madeira , representando 11,6% da população residente, 14,6 dos alojamentos familiares e 42,7% do território nacional.

Tratou-se de uma iniciativa verdadeiramente pioneira a nível mundial, com um âmbito nacional integrado e com débitos mínimos de 40 Mbps por utilizador final, o que compara com a generalidade da Europa, que ainda está nos 2 Mbps.

3. A transição da televisão analógica para a digital e a alocação do espectro libertado às comunicações móveis, permitindo as nóveis e promissoras ofertas de LTE, consumidoras de espectro acrescido, tem estado igualmente sobre as nossas mesas de trabalho.

O processo de “switch off” do sinal analógico não suscita particular complexidade técnica. O cuidado do regulador prende-se mais, por um lado, com a óptica da protecção dos consumidores, através de campanhas informativas, preventivas e repressivas, que o ponham ao abrigo de práticas fraudulentas na aquisição dos descodificadores e ciente de alguns direitos; por outro, com o cumprimento das obrigações de cobertura, de informação e de subsidiação que a PT tem a seu cargo, como vencedora do concurso e gestora da plataforma de sinal aberto. O projecto-piloto de Alenquer correu muito bem. Até Abril de 2012 a televisão será digital em todo o País que ainda a não tem por subscrição.

Mas o novíssimo sortilégio é a LTE. A designação não podia ser mais calhada: “Long Term Evolution”. 100 Mega nos telemóveis querem dizer isso mesmo: podemos lançar o leilão para a atribuição do espectro já – o que realmente estamos a fazer – mas os resultados melhor se avaliarão a longo prazo. Porque a panóplia de possibilidades é imensa, mas as vicissitudes económico-financeiras podem condicionar a oferta e a procura e é bom que estas auto-estradas não fiquem também vazias por falta de aplicações úteis. No Portugal que somos, com uma taxa de penetração de telemóveis superior a 150%, muito vai passar pelo uso do móvel e dos “smartphones” em particular.

4. A convergência de plataformas, a verticalização dos operadores e a oferta de pacotes, trazem de novo o mercado em ebulição e o regulador a ser ultrapassado e a ter de inovar à força: vamos ter televisão interactiva no telemóvel, onde já temos tudo e mais alguma coisa, os televisores foram reciclados como pontos de acesso à net, a vídeos e jogos, os pc reconvertidos em multiusos para serviços de voz e de televisão, os ipad e os e-books estão a transformar os jornais e os livros.

São estes suportes novos e a convergência dos velhos e estas redes futuristas, fixas e móveis, com capacidade de débito nos dois sentidos cada vez mais ambiciosas, que vão marcar muito mais profundamente a geração das redes sociais, que por ora apenas quase troca mensagens e partilha conteúdos no facebook: os serviços de tele-medicina serão banalizados, o telemóvel vai ler os resultados das análises que faremos em casa, a tele-presença vai intensificar-se, a segurança doméstica e a domótica vão ser rentáveis e acessíveis, o comércio electrónico vai ser feito cada vez mais a partir do telemóvel, as eleições  - não ainda as de dia 5 - serão por voto electrónico…O que não está garantido é que o e-government faça os governos governar melhor e que a informatização da justiça faça sentenças mais justas.

E há questões institucionais que emergem: como regular dispersamente e por entidades diferentes, serviços e ofertas integradas? O regulador da oferta de redes não deve igualmente regular a oferta de conteúdos? E o gestor de números de telefone não deve igualmente gerir a atribuição de nomes de domínio?     

Minhas Senhoras e Meus Senhores

5. Frequentemente a ciência e a técnica antecipam a realidade e podem passar alguns anos até as invenções e descobertas se tornarem socialmente úteis e rentabilizadas. Pediram-me que evocasse este episódio de sucesso auditado. Há 13 anos, exercia eu funções de autarca, apareceu-me um ministro visionário – o Prof. Mariano Gago -, que me propôs um desafio: o de fazer da minha cidade a primeira cidade digital do País. Um estádio de futebol dava mais votos, o saneamento básico era mais necessário, mas percebi que o digital era o futuro. Resolvi fazer as três coisas. Havia só um pequeno problema a explicar aos eleitores: é que  ninguém sabia ao certo o que era uma cidade digital. Tivemos que a inventar. Felizmente continua a ser reinventada.

Foi uma notável experiência que arrancou com um consórcio entre a CMA, a PT Inovação e a Universidade de Aveiro, liderado por uma gestora com visão, que alguns dos presentes conhecem – a Lusitana Fonseca – e que me é muito grato evocar aqui. Identificamos várias áreas de intervenção: autarquias, escolas, Universidade, serviços de saúde, instituições de solidariedade social, o tecido produtivo, o sector da informação, cultura e lazer e envolvemos dezenas de parceiros privados e institucionais. Muito do que então imaginámos ainda está por fazer. Não era fácil construir uma cidade digital em banda estreita e pouco generalizada. Mas, sobretudo, era impossível construir uma cidade sem pessoas habilitadas a dar-lhe vida. Não podia ser apenas mais um projecto tecnológico, devia mudar a vida das pessoas. Aos poucos o projecto foi ganhando vida. A cidade primeiro e, depois,  toda a região, sob a égide da Associação de Municípios, num projecto financiado pelo POSI no montante de 22 milhões de Euros.  

Abrangeu, na segunda fase, 326 entidades beneficiárias - entre Juntas de Freguesia, empresas, escolas, centros de saúde, museus e bibliotecas -, 78 projectos, milhares de horas de formação e 24 mil pessoas com certificação de competências TIC.

Dos sistemas de informação geo-referenciada, à partilha de conteúdos pedagógicos, à disponibilização de serviços autárquicos “online”, à gestão de marcações nos centros de saúde, à modernização das empresas, de tudo um pouco se fez, com o apoio de 95 espaços de acesso público à internet monitorizados. Não foi apenas uma rede digital que se criou, foi uma nova forma de viver a “civitas” que se materializou, desmaterializando.

Tudo isto parece agora de pouca monta quando temos um País que já está em primeiro lugar no ranking do E-governement europeu, onde o Presidente da República comunica pelo facebook e onde se está a generalizar o acesso a banda larguíssima.   

Mas a mensagem principal que vos queria deixar com este exemplo é a de que a inovação e a criatividade têm de ser sustentáveis economicamente e socialmente úteis para poderem transformar a realidade. A inovação e a criatividade são condições necessárias, mas podem não ser suficientes. Algumas das ideias de 1998, só agora, com a banda muito larga e de acesso universal é que se podem utilmente levar a cabo. É por isso que as diacronias de desenvolvimento entre os nossos países irmãos não permitem uma exportação ou importação pura e simples de modelos. Mas permitem colher ensinamentos virtuosos, não repetir os mesmos erros e estimular novas soluções.

Minhas Senhoras e Meus Senhores

O Mundo já mudou, mas ou muito me engano ou a nossa geração ainda vai mudar mais o mundo. Nós que aqui estamos hoje, agentes qualificados das comunicações entre os homens, não devemos nunca esquecer que há homens inqualificados e socialmente desclassificados, uns a utilizar as redes, outros fora de qualquer rede caritativa sequer, quanto mais digital. A infoexclusão é a exclusão da moda, mas é apenas mais uma. Quase sempre para os que já não estão incluídos em coisa nenhuma.

Pensar modelos de negócio e regulatórios? Concerteza. Mas não olvidemos o impacto e a força real de modelação social dada pelas comunicações. Porque quando temos uma parte da humanidade com todos os “gadgets” e uma parte muito maior dela, sem a dignidade essencial, há um imperativo ético de igualdade por cumprir.

Inovação digital, com sentido de responsabilidade social; inovação regulatória, com percepção das mutações tecnológicas e dos interesses em presença, concorrenciais e dos consumidores; inovação sim, mas ciente de que as comunidades e as pessoas ainda não estão todas no mesmo capítulo da História. Eis – passe a presunção - como os homens das comunicações podem ajudar a escrever uma História melhor para os homens.    

Porto, 19 de Maio de 2011

Alberto Souto de Miranda

Vice Presidente da ANACOM