A. Enquadramento


1. Numa situação de monopólio, os Custos Líquidos do Serviço Universal (CLSU) são normalmente internalizados no próprio sistema tarifário: o Prestador do Serviço Universal (PSU), normalmente operando em regime de concessão, pode subsidiar as margens negativas associadas aos clientes não rentáveis com recurso às margens geradas pelos clientes rentáveis que, na ausência de concorrência, se mantêm servidos pelo PSU. Neste ambiente de monopólio, apenas faria sentido financiar os CLSU (através de fundos públicos) caso os preços, por razões sociais ou estratégicas, tivessem sido definidos a um nível que não permitisse tal subsidiação cruzada, o que levaria a concessão a alcançar o equilíbrio apenas após financiamento. Esta abordagem nunca foi utilizada no caso português, tendo sido introduzido um mecanismo de price cap que permitiu à PT Comunicações, S.A. (PTC), enquanto PSU, a recuperação dos seus custos num cenário de incentivo a acréscimos de eficiência. De facto, durante um número significativo de anos a PTC conseguiu manter em níveis bastante elevados a sua quota de mercado sem ter necessidade de baixar os preços abaixo do price cap (que por definição traduzia preços máximos). Tal significa que nesse período, a PTC, sem reduzir os preços e sem perder clientes, beneficiou das condições necessárias para manter internalizados os custos relativos à prestação do serviço universal (SU).

2. Num ambiente de efectiva concorrência, o financiamento dos CLSU tem de ser externalizado, já que o PSU, exposto a uma efectiva concorrência nas zonas rentáveis, teria de descer os preços reduzindo as suas margens para manter a sua competitividade, sendo assim incapaz de manter endógenos os custos de prestação do SU. Note-se que, caso não fosse esta a aproximação seguida pelo PSU, então perderia clientes rentáveis para os seus concorrentes e suportaria integralmente as margens negativas associadas aos clientes não rentáveis. Neste ambiente concorrencial, o PSU pode adoptar preços de mercado para todos os seus clientes, sendo que aqueles que não são rentáveis (e que em condições normais o PSU não serviria) continuarão a gerar uma margem (agora mais) negativa que, no entanto, será suportada fora do sistema tarifário: através de fundos públicos, ou através de um fundo para o qual contribuem os diversos operadores, ou ainda através de uma combinação destes dois instrumentos.

3. No entanto, de acordo com o enquadramento legal aplicável ao financiamento dos CLSU, para onde aliás remete o contrato de concessão celebrado com a PTC 1, a externalização do seu financiamento só pode ser activada quando estes representam um encargo excessivo. A transposição desta expressão para o ordenamento jurídico nacional encontra duas fases distintas:

  • Uma primeira fase, correspondente à Directiva 97/33/CE 2, de 30 Junho, que referia no seu art.º 5.º que sempre que um Estado membro determinasse que as obrigações do SU representavam uma sobrecarga injusta (unfair burden é o termo usado na versão inglesa), devia estabelecer um mecanismo de repartição do custo líquido das obrigações do serviço universal com outras organizações que explorassem redes públicas de telecomunicações e/ou serviços de telefonia vocal acessíveis ao público.

    Em transposição da Directiva 97/33/CE, os art.ºs 12.º e 14.º do Decreto-Lei (DL) 458/99 3, de 5 de Novembro, referem, respectivamente, o seguinte: "1 - Os prestadores do serviço universal de telecomunicações devem ser compensados pelas margens negativas inerentes à sua prestação, quando existentes” e “1 - Para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 12º e quando justificado, pode ser criado um fundo de compensação do serviço universal de telecomunicações…".

    Note-se a este respeito que conjugando o disposto nos art.ºs 12.º, n.º 1 e 14.º, n.º 1 do DL n.º 458/99 resulta que para que haja lugar à compensação é necessário: (i) que se verifique e reconheça que existem margens negativas inerentes à prestação do SU, calculadas nos termos do art.º 13.º do mesmo diploma, e (ii) que se justifique a sua compensação, densificando-se este conceito com a noção de sobrecarga injusta, de harmonia com o que prevê o n.º 1 do art.º 5.º da Directiva 97/33/CE 4.

  • Uma segunda fase, definida na Directiva 2002/22/CE 5 (Directiva do SU) que refere que sempre que as autoridades reguladoras nacionais considerem que a prestação do SU pode constituir um encargo excessivo 6 para as empresas designadas, calcularão os custos líquidos da sua prestação.

    Na sequência da transposição da Directiva 2002/22/CE, o art.º 95.º da Lei n.º 5/2004 7, de 10 de Fevereiro (LCE), refere: "1 - Sempre que a ARN considere que a prestação do serviço universal pode constituir um encargo excessivo para os respectivos prestadores, calcula os custos líquidos das obrigações de serviço universal de acordo com um dos seguintes procedimentos: a) Calcular o custo líquido da obrigação de serviço universal, tendo em conta quaisquer vantagens de mercado adicionais de que beneficiem os prestadores; b) Recorrer ao custo líquido da prestação do serviço universal identificado no âmbito de um mecanismo de designação previsto no presente diploma. 2 - A ARN deve definir o conceito de «encargo excessivo», bem como os termos que regem a sua determinação, nomeadamente a periodicidade das avaliações e os critérios utilizados".

    Ou seja, o DL n.º 458/99 dispunha que primeiro se deveria proceder à avaliação da existência de margens negativas, as quais eram demonstradas e calculadas pelo PSU, e depois devidamente auditadas e aprovadas pela ARN (Autoridade Reguladora Nacional, o ICP-ANACOM). Já no actual quadro legal, com a LCE, em primeiro lugar deve ser apurado se a prestação do SU pode constituir um encargo excessivo e, em caso afirmativo, procede-se então ao cálculo dos CLSU.

    Nesta linha, a PTC solicitou ao ICP-ANACOM em 05.07.2007 8 que definisse o conceito de encargo excessivo, bem como a sua forma de determinação para que pudesse apurar os CLSU a partir de 2004.

4. Por deliberação de 30.01.2008 9, o ICP-ANACOM informou que iria iniciar um "processo de especificação detalhada sobre a metodologia a aplicar no cálculo do CLSU e de definição das condições em que se poderá considerar que a sua prestação seja passível de representar um encargo excessivo para o respectivo prestador".


5. Importa ainda referir que, conforme resulta do art.º 14.º do DL n.º 458/99, a eventual compensação das margens negativas, caso existam, deverá ser feita apenas quando justificado, ou seja - como se conclui por via da interpretação do disposto naquela norma de acordo com o que fixa o artigo 5.º da Directiva 97/33/CE que está na sua origem - quando os CLSU inerentes à prestação do serviço representem uma sobrecarga injusta (encargo excessivo) para o PSU. Está assim em causa a verificação de uma condição de que depende o financiamento dos custos decorrentes da prestação do SU, não podendo o Regulador deixar de concretizar o que constitui sobrecarga injusta.

6. Note-se que os conceitos de sobrecarga injusta e encargo excessivo são equivalentes, na medida em que ambos se referem à diferença entre os proveitos e os custos associados à prestação do serviço (vide as disposições referentes ao seu cálculo: art.º 13.º do DL n.º 458/99 e art.º 96.º da LCE), e que no âmbito de qualquer um dos regimes (DL n.º 458/99 e LCE) a sua definição compete ao ICP ANACOM. Assim, embora o DL n.º 458/99 não o previsse expressamente, deve o ICP-ANACOM definir o conceito de "sobrecarga injusta" ou "encargo excessivo" previamente, não havendo motivos para que haja diferenças entre os dois regimes quanto a este aspecto. Neste contexto, o que o ICP-ANACOM vier a decidir quanto à definição de "encargo excessivo", nos termos do n.º 2 do art.º 95.º da LCE, será naturalmente usado como referência para a consideração do mesmo conceito no período anterior à da entrada em vigor da LCE.

7. Com este enquadramento, a presente decisão define as condições em que será considerado que a prestação do SU é passível de representar um encargo excessivo.

Notas
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1 Isto é para o Decreto-Lei n.º 458/99, de 5 de Novembro até Fevereiro de 2004 e para a Lei das Comunicações Electrónicas (Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro) a partir dessa data. Cfr. arts. 20.º e 40.º das Bases da Concessão anexas ao Decreto-Lei n.º 31/2003, de 17 de Fevereiro.
2 Directiva 97/33/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30.6.1997https://www.anacom.pt/render.jsp?contentId=973507 à data de 10.01.2011.
3 Decreto-Lei n.º 458/99, de 5 de Novembrohttps://www.anacom.pt/render.jsp?contentId=974404 à data de 10.01.2011.
4 De acordo com o princípio da interpretação conforme, aplicável no âmbito da transposição das directivas, segundo o qual a norma nacional tem de ser interpretada de acordo com a norma comunitária que visou transpor.
5 Directiva 2002/22/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7.3.2002https://www.anacom.pt/render.jsp?contentId=965184 à data de 10.01.2011.
6 Note-se, a este propósito, que a existência de uma ''sobrecarga injusta'' na Directiva 97/33/CE ou de um ''encargo excessivo'' na Directiva 2002/22/CE corresponde nas versões inglesas daquelas Directivas à mesma expressão ''unfair burden''. Como evidencia o texto da versão inglesa das Directivas a condicionante é a mesma, pelo que às diferentes expressões usadas nas versões portuguesas daquelas Directivas não corresponde um diferente significado.
7 Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereirohttps://www.anacom.pt/render.jsp?contentId=930940 à data de 10.01.2011.
8 Carta datada de 05.07.2007, com entrada ANACOM E38005/2007.
9 Avaliação dos custos líquidos decorrentes da prestação do serviço universalhttps://www.anacom.pt/render.jsp?contentId=575577 à data de 10.01.2011.