Acórdão n.º 138/2016, de 22 de junho



Tribunal Constitucional

Acórdão n.º 138/2016


Processo n.º 651/15

Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional da Decisão do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão de 2 de junho de 2015, que recusou a aplicação do artigo 113.º, n.º 1, alínea ll), e n.º 6, da Lei das Comunicações Eletrónicas, aprovada Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, (na redação resultante do Decreto-Lei n.º 176/2007, de 8 de maio, posteriormente modificada, doravante, "LCE"), em conjugação com o artigo 54.º, n.º 5, daquela mesma lei (na redação originária) e com o artigo 26.º, n.º 2, alínea c), e n.º 3, do Regulamento da Portabilidade (doravante, "RP"), na redação alterada pelo Regulamento do ICP-ANACOM - Autoridade Nacional de Comunicações n.º 114/2012, de 13 de março, com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa (doravante, "CRP") (fls. 2786, 2787 e 2792).

2 - Notificado para alegar, o representante do Ministério Público neste Tribunal apresentou alegações, das quais, por não apresentarem conclusões formais, se transcrevem as partes que corporizam, segundo aquele representante, o essencial da sua argumentação:

«[...]

24.º

Deste modo, a ARN exerce um conjunto polifacetado de atribuições, prosseguindo objetivos diversos, mas complementares, como os de promover (e preservar) a concorrência na oferta de redes e serviços de comunicações eletrónicas, de recursos e de serviços conexos, contribuir para o mercado interno da União Europeia e defender os interesses dos cidadãos.

Para o efeito, cabe-lhe assegurar que os utilizadores colham o máximo benefício em termos de escolha, preço e qualidade, bem como lhe cabe evitar distorções ou entraves à concorrência, eliminando os obstáculos existentes à oferta de redes de comunicações eletrónicas, de recursos e serviços conexos e de serviços de comunicações eletrónicas a nível europeu.

E, neste âmbito, age em concertação com entidades supranacionais (a Comissão Europeia) e entidades congéneres (autoridades reguladoras nacionais das comunicações dos Estados Membros da União Europeia), «com o objetivo de garantir o desenvolvimento de uma prática reguladora e uma aplicação coerente do quadro regulamentar comum para as redes e serviços de comunicações eletrónicas».

Não age, pois, sozinha, cabendo-lhe executar políticas similares às de outros países europeus, tendo em vista garantir um mercado interno das comunicações que se apresente transparente, eficaz e sem distorções, designadamente em matéria de tarifas ou do estabelecimento de sanções às empresas que nele operam.

Por outras palavras, se a ARN entender começar a ter comportamentos de regulação que saiam fora dos parâmetros de autoridades congéneres de outros países, é o mercado interno que se vai ressentir, com as naturais consequências em termos de diferentes condições de utilização dos diferentes serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público, designadamente nacional.

Daí que o enfoque sugerido pelo digno magistrado judicial recorrido, embora denotando espírito analítico do ponto de vista estritamente argumentativo, se arrisca a conduzir a particularismos, em matéria de sancionamento, de consequências negativas para os utilizadores nacionais.

Designadamente por poder falsear a concorrência entre as empresas que integram o setor, criando condições de funcionamento (e de sancionamento) diferentes para as que cumprem, em relação àquelas que não cumprem as regras estabelecidas pelas autoridades nacionais de regulação.

25.º

Importa não esquecer que estamos, nos presentes autos, no âmbito do chamado Direito da Mera Ordenação Social, ou do Direito das Contraordenações, concebido como um instrumento de intervenção administrativa de natureza sancionatória, no sentido de garantir maior eficácia à ação administrativa.

O Direito das Contraordenações surge como um novo ramo de direito sancionatório, autónomo do Direito Penal, mas que com ele mantém profundas ligações.

Tanto assim, que o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (RGCO), que define o regime geral do Direito de Mera Ordenação Social, no seu artigo 32.º, define o Direito Penal como direito subsidiário e, por força do seu artigo 41.º, no que ao regime processual se refere, determina que o Código de Processo Penal seja tido como direito subsidiário.

No entanto, a aplicação do processo criminal, enquanto direito subsidiário, tem como limite a salvaguarda do próprio regime do processo de contraordenação, como resulta da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 41.º do RGCO.

Pelo que, não obstante a aproximação existente, não se pode confundir o processo criminal com o procedimento contraordenacional, até pela natureza distinta de cada um desses ordenamentos e das respetivas sanções, que constituem medidas sancionatórias de caráter não penal.

A autonomia do tipo de sanção, previsto para as contraordenações, repercute-se a nível adjetivo, não se justificando que sejam inteiramente aplicáveis, ao processo contraordenacional, os princípios que orientam o direito processual penal.

A diferente natureza dos processos impõe, ainda, que a invocação das garantias de processo criminal, em sede de procedimento contraordenacional, deva ser precedida de especiais cautelas.

26.º

Assim, relativamente às garantias de defesa, os princípios do direito criminal não se aplicam ao processo contraordenacional de forma cega, mas com cautelas, variando o grau de vinculação, a esses princípios, consoante a natureza do processo.

Tais cautelas, no que respeita à invocação das garantias de processo criminal em sede de procedimento contraordenacional, conduziram, mesmo, à redação do n.º 8 do artigo 32.º da CRP, introduzido pela Revisão Constitucional de 1989, e que atualmente está consagrada no n.º 10 do mesmo artigo 32.º, o qual dispõe que "nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa".

Desta forma, o legislador constitucional pretendeu apenas assegurar, no âmbito do processo contraordenacional, os direitos de audiência e de defesa do arguido, isto é, que o arguido não possa sofrer qualquer sanção contraordenacional sem que seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas.

O que aconteceu, aliás, nos presentes autos, quer no âmbito do procedimento administrativo, quer posteriormente, em sede de impugnação judicial.

27.º

O digno magistrado judicial recorrido, algo temerariamente, julga ter intuído, da jurisprudência deste Tribunal Constitucional, uma justificação adequada para a sua tese, relativamente à portabilidade de números telefónicos (cf. artigo 54.º da Lei 5/2004, anteriormente referido), muito embora, como se viu, o n.º 5 desta disposição expressamente determine, sem margem para dúvidas, que «compete à ARN, após o procedimento geral de consulta previsto no artigo 8.º, determinar as regras necessárias à execução da portabilidade».

Duvida-se, porém, que a jurisprudência constitucional seja arrimo seguro para a sua peregrina posição, uma vez que a atuação da Autoridade Nacional de Regulação é, em tal jurisprudência, vista de um ponto de vista integrado e único, designadamente em matéria sancionatória.

[...]

37.º

Ora, julga-se que, quer a fundamentação do Acórdão 78/13, quer a fundamentação do Acórdão 612/14, acabados de referir, respondem, suficientemente, contrariando-as, às preocupações do digno magistrado judicial recorrido, preocupações, essas, que o levaram a desaplicar as normas em apreciação no presente recurso.

38.º

Importa não esquecer, no domínio em apreciação, aquilo que a Autoridade Nacional de Regulação já havia suficientemente destacado, na sua Deliberação de 30 de dezembro de 2014, a que atrás se fez referência (cf. supra n.º 5 das presentes alegações):

"O regime das compensações foi introduzido no Regulamento da Portabilidade pelo Regulamento n.º 87/2009, de 18 de fevereiro, que teve origem num projeto de alteração ao Regulamento da Portabilidade submetido ao procedimento regulamentar previsto no artigo 11.º dos Estatutos do ICP-ANACOM, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 309/2001, de 7 de dezembro, bem como no n.º 5 do artigo 54.º e no n.º 1 do artigo 125.º da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, e ao procedimento geral de consulta consignado no artigo 8.º deste no âmbito do mesmo.

E, nomeadamente, dispõe o n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, que compete à ARN desempenhar as funções de regulação, supervisão, fiscalização e sancionamento previstas na presente lei, nos termos das suas atribuições, e a alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º do mesmo diploma legal que é objetivo de regulação das comunicações eletrónicas a prosseguir pela ARN promover a concorrência na oferta de redes e serviços de comunicações eletrónicas, de recursos e serviços conexos.

Na nota justificativa daquele projeto, explicava-se que, com as alterações preconizadas, se pretendia sublinhar a responsabilidade do PR em todo o processo de portabilidade, definindo-se regras de eficiência entre os prestadores e assim se definindo compensações monetárias entre estes, tendo em conta nomeadamente as receitas típicas dos prestadores do serviço de telefone em local fixo e os valores das compensações já estabelecidas noutras áreas, como a OLL e a pré-seleção, bem como promover a autorregulação e incentivar a concorrência.

E, como se explica no esclarecimento sobre o regime de compensações que foi publicado por esta Autoridade em 2010.04.16, esse regime "visou estabelecer um regime de incentivos ao cumprimento das obrigações dos prestadores que evite a ocorrência e o prolongamento de situações de incumprimento, devido ao facto de a punição do incumprimento em processo de contraordenação se revestir necessariamente de alguma morosidade", visando, simultaneamente, "a proteção da concorrência, designadamente procurando obstar a que os operadores se defraudem mutuamente; e a proteção dos assinantes, procurando que a celeridade que se pretende imprimir aos processos de portabilidade não seja obtida à custa de um menor cuidado com a vontade real dos utilizadores".

Nestes termos, as compensações estabelecidas inscrevem-se não no foro da autonomia privada, mas na área da proteção do interesse público (defesa da concorrência e proteção dos consumidores).

É preciso não esquecer que a portabilidade vem prevista na Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, segundo a qual esta Autoridade tem de assegurar três objetivos de regulação, nos termos do respetivo artigo 5.º: promover a concorrência da oferta de redes e de serviços de comunicações eletrónicas, contribuir para o desenvolvimento do mercado da União Europeia e defender os interesses dos cidadãos.

A prossecução destes objetivos permite-lhe, inclusivamente, impor medidas de regulação em sede de análise de mercados (que podem ser onerosas para os operadores, mas, sendo desrespeitadas, constituem contraordenação), nos termos dos arts. 18.º, 55.º e ss. e 113.º do mesmo diploma legal. E, se pode fazê-lo através de medidas administrativas, por maioria de razão pode fazê-lo também através de Regulamento, publicado no Diário da República.

Assim, para além de ter competência para a elaboração das regras constantes do Regulamento da Portabilidade (em que se inscrevem as compensações), por força do disposto no n.º 5 do artigo 54.º da mesma lei, sempre teria também esta Autoridade a possibilidade de o fazer ao abrigo do disposto no artigo 5.º, também dessa lei, e no artigo 11.º dos seus Estatutos. [...]

Assim, as compensações em causa funcionam como um mecanismo de defesa dos interesses dos assinantes e da correção do procedimento de portabilidade.

A portabilidade tem um impacto público relevante, pois afeta muitos utilizadores, e é necessário assegurar o respeito pelo cumprimento das suas regras de execução em prol do interesse público de defesa dos interesses e direitos dos consumidores e da promoção da concorrência, ficando dessa forma acautelados os princípios da segurança e da certeza jurídicas. Sendo um procedimento que envolve os utilizadores, o novo prestador e o antigo prestador, e devendo a denúncia do contrato "original" ser apresentada não à outra parte nesse contrato, como decorreria das regras gerais, mas, de acordo com uma norma excecional, a um terceiro - o novo prestador - importa que sejam escrupulosamente respeitados os direitos do primeiro prestador.

Assim sendo, o legislador determinou, nomeadamente, quais as compensações a pagar pelo PR ao PD em caso de portabilidade indevida por causa que seja exclusivamente imputável àquele, bem como por não envio da documentação no prazo estabelecido

3 - Notificada para contra-alegar, a recorrida NOS Comunicações, S. A., concluiu da seguinte forma:

«A. O thema decidendum nos presentes autos é o de saber se as normas constantes dos artigos 113.º, n.º 1, alínea ll) e n.º 6 e artigo 54.º, n.º 5 da Lei das Comunicações Eletrónicas (LCE) e o artigo 26.º, n.º 2, alínea c) e n.º 3, do Regulamento da Portabilidade (RP), e em especial a primeira, na interpretação de nelas fundar a qualificação como infração contraordenacional o não pagamento entre operadores da compensação prevista no RP vulneram a Constituição, designadamente, mas não só, o disposto nos artigos 29.º, n.º 1 e 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa ("CRP").

B. O Digníssimo Magistrado do Ministério Público junto do TC limita-se nas suas alegações de recurso a reproduzir e a transpor para o caso dos autos jurisprudência constitucional alegadamente proferida sobre o thema decidendum, mas escapam-lhe os contornos específicos do thema, que, rigorosamente, não foi nunca objeto de pronúncia pelo Tribunal Constitucional, sendo, portanto, uma nova temática.

C. Ao não sustentar em que é que a "falta de pagamento entre operadores das compensações previstas no RP" constitui ou se assimila a qualquer das realidades tipificadas no artigo 113.º, n.º 1, alínea ll) e n.º 6 da LCE, as alegações de recurso do Senhor Procurador-Geral Adjunto escapam à questão que aqui se alevanta e que cumpre dilucidar.

D. Os problemas tratados pelo TC nos acórdãos concretamente citados pelo Exmo. Senhor Magistrado do Ministério Público ou não são da mesma índole ou não são do mesmo grau ou intensidade que a questão posta necessariamente coloca, o que mais do que justifica uma pronúncia por parte do TC.

E. A ANACOM não dispõe, nos termos da legislação em vigor, de habilitação normativa para sancionar como contraordenação o não pagamento de compensações entre operadores.

F. O artigo 26.º, n.º 3 do RP padece do vício de inconstitucionalidade, inconstitucionalidade que decorre, no essencial, de três ordens de razão: (a) não existir qualquer dispositivo legal que atribua à ANACOM poderes para emanar uma norma com o objetivo de estabelecer o pagamento de compensações entre os diferentes operadores nas situações de portabilidade indevida ou não envio da documentação relativa aos processos de portabilidade; (b) não ser indicada a norma habilitante, como imposto pelo n.º 7 do artigo 112.º da CRP; e (c) estarmos diante um verdadeiro regime sancionatório, que apenas poderia ter sido criado através de ato legislativo, e não de norma regulamentar, que, entre outros aspetos, assegurasse os direitos de audiência e defesa previstos no artigo 32.º, n.º 10 da CRP.

(A) INEXISTÊNCIA DE HABILITAÇÃO LEGAL

G. A ANACOM dispõe de competência para elaborar regulamentos (i) nos casos em que a lei especificamente preveja esse poder regulamentar, ou seja, tem de existir uma lei concreta (não bastando os Estatutos) que confira tal poder à ANACOM e (ii) nas situações em que esse regulamento seja necessário e indispensável para o exercício das suas atribuições.

H. No primeiro caso estamos em face dos chamados regulamentos de execução ou complementares - e que são, nas palavras de Afonso Queiró, "[...] uma edição complementar de normas jurídicas de desenvolvimento no quadro ou dentro dos limites dessas bases [...]", no segundo caso, perante os chamados regulamentos independentes.

I. A aprovação do RP pela ANACOM foi efetuada, como expressamente resulta do preâmbulo de tal Regulamento, "[...] ao abrigo do disposto na alínea a,) do artigo 9.º dos Estatutos do ICP-ANACOM, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 309/2001, de 7 de dezembro, e do n.º 5 do artigo 54.º e do n.º 1 do artigo 125.º, ambos da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro [...]" -, tratando-se de um regulamento de execução ou complementar.

J. Os regulamentos de execução ou complementares estão sujeitos a limites constitucionais, nomeadamente, (i) o princípio da reserva de lei, previsto na CRP, nos termos do qual as matérias a ele sujeitas só podem ser objeto de regulação através de ato legislativo: (i) o princípio da precedência de lei, expressamente previsto no artigo 112.º, n.º 7 da CRP [...], do qual decorre a necessidade da prioridade da lei relativamente à atividade regulamentar e o dever de citação da norma legal habilitante pelos regulamentos; e (iii) os princípios que regulam a atividade da Administração Pública, mormente os que resultam do artigo 266.º, n.º 2 da CRP.

K. O RP ultrapassa largamente os limites previstos na CRP e na Lei no que se refere à aprovação de regulamentos complementares ou de execução.

L. O RP alude no que se refere às normas habilitantes a três disposições - o artigo 9.º, alínea a) dos Estatutos do ICP-ANACOM, o artigo 54.º, n.º 5 da LCE e o artigo 125.º, n.º 1, também da LCE - e tem por objeto a determinação das regras necessárias à execução da portabilidade.

M. No momento que foi aprovado o RP, era claro e inequívoco que a LCE previa a possibilidade de aprovação de regulamentos complementares ou de execução que tivessem como desiderato a determinação das regras necessárias à execução da portabilidade, mas nada mais.

N. A ANACOM, apoiada em norma legal (anterior) que a habilitava tão-simplesmente a "determinar as regras necessárias à execução da portabilidade", aprovou um conjunto de disposições regulamentares que introduziram um mecanismo de compensação entre operadores, nos casos de portabilidade indevida e de não envio, dentro do prazo definido, da documentação referente à portabilidade.

O. A ANACOM não só não indica de que forma, e por que razão, tal mecanismo era necessário à "execução da portabilidade", como fundamenta o mesmo (mecanismo) no facto de a "punição do incumprimento" em processo de contraordenação se revestir necessariamente de alguma morosidade".

P. Apenas em setembro de 2011, por força da Lei n.º 51/2011, de 13 de setembro, a LCE foi alterada, em concreto o artigo 54.º, n.º 7, no sentido de permitir à ANACOM a definição de mecanismos de compensação; ou seja, só em setembro de 2011 passou a estar prevista uma norma legislativa que habilita a ANACOM a definir por via regulamentar um regime de compensações a pagar pelos operadores,

Q. Mesmo a nova previsão do artigo 54.º, n.º 7 da LCE - que não é a que aqui releva - não autoriza a conclusão de que as compensações mencionadas não são apenas aquelas previstas para assinantes, mas também entre operadores.

R. O artigo 26.º do RP é inconstitucional, na medida em que foi elaborado pela ANACOM sem a necessária habilitação legal para o estabelecimento de um mecanismo de compensação entre operadores, o que importa a violação do princípio da precedência da lei.

S. As regras necessárias para a execução da portabilidade compreenderão os procedimentos e processos (técnicos, informáticos, administrativos) necessários e adequados para se proceder à concretização da portabilidade, mas já não, a atribuição de compensações entre operadores quando tenha tido lugar uma portabilidade indevida ou não tenham sido respeitados os prazos de envio de documentação entre empresas.

T. Nem a portabilidade indevida, nem o não envio atempado de tal documentação, constituem requisito ou critério necessário para a execução da portabilidade e cuja ausência de regulamentação tenha como efeito ou consequência a limitação ou colocação em perigo de tal execução.

U. O facto de o RP configurar um regulamento de execução da LCE), e que, enquanto tal, tem como objetivo complementar e preencher a totalidade do respetivo regime jurídico que lhe deve caber, impõe e exige o estrito cumprimento das normas Constitucionais aplicáveis, a existência de habilitação legal que legitime a sua aprovação.

(B) FALTA DE INDICAÇÃO DE NORMA HABILITANTE

V. Nenhuma das normas habilitantes que estiveram na génese da aprovação do RP, atribui competência à ANACOM para estabelecer o pagamento de compensações entre operadoras e, porventura, por isso mesmo, o RP não invoca qualquer habilitação legal para esse efeito, o que em si mesma configura uma violação do princípio da precedência da lei (artigo 112.º, n.º 7 da CRP).

(C) REGIME SANCIONATÓRIO

W. A ANACOM criou, sob a capa de um "regime de compensações" entre operadoras, um verdadeiro regime sancionatório, o que traduz a violação manifesta do princípio da reserva de lei: tais compensações mais não são do que a previsão encapotada de sanções pelo não cumprimento do disposto no RP, mas sem que aos operadores seja permitido o exercício direitos reconhecidos ao arguido em processo contraordenacional, nem sequer os direitos de audiência e defesa que a CRP lhe reconhece no artigo 32.º, n.º 10.

X. O direito previsto no referido artigo 32.º, n.º 10 da CRP tem a natureza de direito, liberdade e garantia pessoal e constitui uma matéria sujeita à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República cf. artigo 165.º, n.º 1, alínea b) da CRP.

Y. Ou seja, a ANACOM, através da criação do regime de compensação entre operadores, regulamentou, de facto, uma matéria em relação à qual não tem poderes ou competência, violando o princípio da reserva de lei, a que se soma um regime que viola o disposto no Regime Geral das Contra Ordenações (RGCO)

Z. A imposição de um "regime de compensações" entre privados traduz igualmente a violação do direito à livre iniciativa económica privada, (artigo 61.º, n.º 1 da CRP), na medida em que é imposto aos operadores o pagamento de determinadas quantias a outros operadores sem que exista um dano ou prejuízo efetivo e que mereça, por essa razão, ser salvaguardado; por se tratar, também, de direito, liberdade e garantia pessoal, não podia a ANACOM limitar ou restringir o exercício de tal direito, cabendo essa competência - nos exatos termos da CRP - ao legislador e não ao regulador, tendo sido violado o artigo 18.º, n.º 2 da CRP.

AA. Inexiste, como concluiu o Tribunal a quo, qualquer base legal que suporte a alegada responsabilidade contraordenacional da NOS quaro à violação do artigo 26.º, n.º 2, c) e n.º 3 do RP.

BB. São os assinantes, e não os operadores o destinatário da proteção conferida pelo RP: "O PR é responsável por todo o processo de portabilidade do número, devendo gerir esse processo na defesa do interesse do assinante".

CC. A questão sob apreciação refere-se tão só e somente à obrigação de pagamento de uma determinada quantia, pré-determinada, por um operador a outro operador, quando se verifiquem atrasos no envio da documentação associada ao processo de portabilidade no prazo fixado no RP ou portabilidades indevidas.

DD. A leitura conjugada dos artigos 113.º, n.º 1, alínea ll) e n.º 6 e artigo 54.º, n.º 5 da LCE e do artigo 26.º, n.º 2, alínea c) e n.º 3, do Regulamento da Portabilidade, não permite perspetivar, nem indiciariamente, como é que o bem jurídico que aí se pretende proteger inclui o não pagamento entre os operadores de uma determinada quantia e concluir o contrário implica conceber a norma em causa como "norma sancionatória em branco".

EE. A falta de pagamento entre operadoras das compensações previstas no RP não importa a violação dos direitos dos assinantes de serviços telefónicos à portabilidade do seu número ou números de telefone: o pagamento de tais compensações é indiferente à efetivação de tal direito e relaciona-se com outras vertentes (interna entre operadores se se quiser) da portabilidade que não a portabilidade do número do assinante.

FF. As compensações entre operadoras não são necessárias para assegurar e agilizar o processo técnico de transporte ou portabilidade dos números e não estão enunciadas na norma legal que supostamente sanciona o seu não pagamento como contraordenação.

GG. Aquilo que aqui está em causa não é a tipificação como ilícito contraordenacional da primeira situação (relativa aos assinantes), mas, e isso é que sim, da segunda (respeitante aos operadores).

HH. Os assinantes são objeto de justa e adequada proteção pelo RP, incumbindo aos operadores o seu ressarcimento caso o interesse destes seja colocado em causa - maxime através da consagração da obrigação que impende sobre os operadores de pagamento aos assinantes de compensações.

II. Pese embora se aceite que "o regime sancionatório em si, definido pela ARN, em matéria de comunicações eletrónicas, já tinha sido julgado conforme à Constituição por este Tribunal Constitucional, relativamente a diversos aspetos do mesmo regime", é imperioso realçar que o TC não se pronunciou, até à presente data, sobre este aspeto específico e concreto do regime de contraordenações previsto na LCE e no RP.

JJ. Nenhum dos arestos em causa aborda a questão em apreço nos presentes autos, nem existe - reafirma-se - qualquer pronúncia anterior do TC sobre o thema decidendum e a jurisprudência constitucional citada acerca do RP suporta inequivocamente a decisão tomada pelo Tribunal a quo no que respeita à esfera de proteção conferida por este diploma.

KK. Não há como sustentar - e o Senhor Procurador Geral Adjunto nem sequer se ensaia a isso - como é que a invocação do artigo 113.º, n.º 1, alínea ll) e n.º 2 da LCE (na redação do Decreto-Lei n.º 176/2007, de 8 maio) como norma tipificadora como contraordenação da falta de pagamento de operadora à outra das compensações previstas no RP não compromete as exigências de certeza e de determinabilidade.

LL. Se tais exigências não resultam para o Direito de Mera Ordenação Social nos mesmos termos que para o Direito Penal tendo por base os artigos 29.º, n.º 1 e 32.º, n.º 7 da CRP - no que não se concede -, elas não podem deixar de resultar sempre dos princípios da Segurança jurídica e proteção da confiança, consagrados no artigo 2.º da CRP, decorrente da própria ideia de Estado de Direito Democrático.

MM. Mesmo desconsiderando a fonte de tipificação do ilícito contraordenacional - admitindo, portanto, que o mesmo poderá ser definido de forma concatenada entre a lei e o regulamento - há um ponto indiscutível: seja onde seja, lei ou regulamento, o ilícito contraordenacional tem, pelo menos, de estar definido e previamente ao sancionamento da conduta que o mesmo visa proibir ou impor.

NN. O artigo 113.º, n.º 1, alínea ll) e n.º 2 da LCE (na redação do Decreto-Lei n.º 176/2007, de 8 maio), isoladamente ou em conjunto com outras disposições da LCE ou do RP, (designadamente, o artigo 54.º da primeira, e 26.º do segundo), não contém a definição essencial da falta de pagamento de compensações entre operadoras como ilícito contraordenacional.

OO. É manifesta a inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 29.º, n.º 1 e 32.º, n.º 10 da CRP, do artigo 113.º n.º 1, alínea ll) e n.º 6, da LCE, em conjugação com o artigo 54.º, n.º 5, do mesmo diploma (na sua redação originária) e com o artigo 26.º, n.º 2, alínea c) e n.º 3, do Regulamento n.º 58/2005, de 18 de agosto, aprovado pela ANACOM, na interpretação da ANACOM de nelas fundar a qualificação como infração contraordenacional o não pagamento entre operadoras da compensação prevista no RP por portabilidade indevida ou falta de envio de notificação.

PP. Assim como, e mesmo que assim não se entenda como mencionado na conclusão precedente, tal interpretação é, pelo menos, inconstitucional por violação dos princípios da segurança jurídica e proteção da confiança, consagrados no artigo 2.º da CRP, e, em última análise, da própria ideia de Estado de Direito (artigo 2.º e 3.º, n.º 2 da CRP).»

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

4 - Começaremos por transcrever as normas em causa:

«Artigo 113.º, n.º 1, alínea ll), da LCE2004

1 - Sem prejuízo de outras sanções aplicáveis, constituem contraordenações:

ll) A violação do direito dos assinantes à portabilidade previsto no n.º 1 do artigo 54.º e o incumprimento das obrigações que sejam estabelecidas nos termos previstos nos n.os 2, 3 e 5 do artigo 54.º;

Artigo 113.º, n.º 6, da LCE2007

«6 - [Anterior n.º 5.]»

Na redação anterior (LCE2004)

«5 - Nas contraordenações previstas na presente lei são puníveis a tentativa e a negligência.»

Artigo 54.º, n.º 5, da LCE2004

«5 - Compete à ARN, após o procedimento geral de consulta previsto no artigo 8.º, determinar as regras necessárias à execução da portabilidade.»

Artigo 26.º, n.º 2, alínea c), e n.º 3, do RP2012

«2 - Nos casos referidos no número anterior, o PR:

[...]

c) Deve pagar ao PD [prestador doador ou detentor] uma compensação no valor de (euro) 100 por cada número que tenha sido indevidamente portado por causa que lhe seja exclusivamente imputável, até ao máximo de (euro) 5.000 por pedido de portabilidade executado no caso de portação de gamas DDI [gamas de 10, 100 ou 1000 números contíguos, iniciadas num número que termina respetivamente em 0, 00 e 000, identificando extensões de PPCA. As gamas DDI de um PPCA podem ser contíguas ou não contíguas];

[...]

3 - Quando não tenha procedido ao envio da documentação no prazo estipulado no n.º 3 do artigo 10.º, o PR [prestador recetor] deve pagar ao PD uma compensação no valor de (euro) 100 por cada número, até ao máximo de (euro) 5.000 por pedido de portabilidade executado no caso de portação de gamas DDI.»

A transcrição destas normas é feita porque são elas as constantes da decisão recorrida e do recurso interposto pelo Ministério Público. Afigura-se-nos, porém, que as normas verdadeiramente postas em causa são apenas as da alínea ll) do n.º 1 do artigo 113.º da LCE e do n.º 5 do artigo 54.º do RP.

5 - Os factos que estão na origem do presente recurso são relativos à chamada portabilidade dos números de telefone.

Em processo que correu os seus termos no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, a recorrida, NOS Comunicações, S. A., impugnou a decisão do ICP-ANACOM - Autoridade Nacional de Telecomunicações que a condenara pela prática de uma contraordenação, na forma dolosa, relativa a violações das regras de portabilidade (fls. 2716-2717).

O comportamento sancionado consubstanciara-se no não pagamento da compensação devida ao prestador doador ou detentor, pela recorrida, na qualidade de prestador recetor, por ter incumprido o dever de enviar àquele, dentro do prazo legal estabelecido, os documentos indispensáveis a permitir o processamento dos pedidos de portabilidade.

A decisão daquele tribunal, ora recorrida, absolveu a recorrida na parte que ora releva:

«5 - Absolver NOS Comunicações, S. A., da prática de uma contraordenação, na forma dolosa, prevista e punida pelo 113.º, n.º 1, alínea ll) e n.º 6, da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro (na redação resultante do Decreto-Lei n.º 176/2007, de 8 de maio), em conjugação com o artigo 54.º, n.º 5, da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro (na redação originária) e com o artigo 26.º, n.º 2, alínea c) e n.º 3, do Regulamento n.º 58/2005, de 18 de agosto (Regulamento da Portabilidade), porque quando conjugadamente interpretadas no sentido de constituir infração contraordenacional se afere como norma sancionatória em branco, e em consequência, violadora dos artigos 29.º, n.º 1 e 32.º, 10, ambos da Constituição da República Portuguesa, pelo que se recusa a sua aplicação com fundamento em inconstitucionalidade.»

6 - Este Tribunal já teve oportunidade de se pronunciar sobre questões portabilidade dos números de telefone, nos Acórdãos n.os 78/2013 e 612/2014. Deles respigamos o que consideramos essencial.

Resulta do Acórdão n.º 78/2013 que:

«[...] a obrigação de prestar informações e entregar documentos à entidade reguladora surge como uma condição de eficácia da efetiva salvaguarda da necessidade de regulação, supervisão e fiscalização da atividade económica, num domínio em que a colaboração dos agentes económicos se torna fundamental para o exercício de tais funções de excecional relevância pública.»;

«Sendo necessário assegurar o cumprimento efetivo desta obrigação típica de uma Administração conformadora, o sancionamento da sua inobservância como contraordenação revela-se, como alternativa a uma legislação penal, o meio coativo adequado e proporcional a satisfazer tal necessidade.»;

«Num mundo de negócios a sanção patrimonial é a indicada para compelir os vários intervenientes a cumprir as regras públicas reguladoras da atividade económica.»

Por sua vez, o Acórdão n.º 612/2014, esclarece:

«[...] a norma do artigo 32.º, n.º 10, da Lei Fundamental, não confere ao arguido em processos de contraordenação o direito de ver reapreciada por um tribunal superior a decisão sobre matéria de facto neles proferida, como pretende a recorrente [...]»;

b) «[...] não merece qualquer censura constitucional a circunstância isolada de a lei sancionadora remeter parte da sua previsão para uma fonte normativa inferior (no caso, o Regulamento da Portabilidade), tipificando como contraordenação o incumprimento das obrigações estabelecidas no citado diploma regulamentar. [...] E não se afigura que a adoção de uma tal técnica remissiva comprometa as exigências de certeza e determinabilidade que a tipificação das contraordenações, por força dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança (artigo 2.º da Constituição), devem também, no essencial, respeitar (neste sentido, cf., entre outros, Acórdãos n.os 41/2004 e 466/2012).»;

c) «[...] se é certo que a decisão reapreciada pelo tribunal de primeira instância configura um ato administrativo e não um ato jurisdicional [...], isso mesmo representa já o exercício de um direito de impugnação judicial que a Constituição confere ao administrado (acoimado) por ela visado (artigo 268.º, n.º 4) e, como se viu, dela não decorre qualquer garantia adicional para o arguido de ver reapreciada por um tribunal superior a decisão judicial que, reapreciando o juízo de facto formulado pela autoridade administrativa, julga provados os factos que fundamentaram a aplicação de uma coima. A garantia do duplo grau de jurisdição consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, que a jurisprudência constitucional tem reconhecido ao arguido em processo penal, em núcleos duros como o da sentença condenatória e decisões que afetem a sua liberdade, não vale para este específico domínio sancionatório, pelas razões, acima enunciadas, que fazem dele um ramo de direito substancialmente diferente do direito criminal.»

7 - A simples leitura destes passos dos dois acórdãos mostra que o Tribunal Constitucional, atentos os parâmetros invocados, já se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade das normas regulamentares que sancionam com coimas a violação das regras de portabilidade dos números de telefone aqui postas em crise.

Todavia, a decisão recorrida pronuncia-se sobre um aspeto que não foi abordado naqueles arestos e que, por isso, justifica ponderação específica. Transcreve-se a parte relevante da fundamentação daquela decisão:

«Assim sendo, seguindo a argumentação expendida na citada jurisprudência constitucional, as obrigações enunciadas no Regulamento de Portabilidade são as estritamente necessárias a assegurar e agilizar o processo técnico de transporte ou portabilidade dos números a que as empresas que operam no setor das telecomunicações estão expressamente vinculadas por força do que dispõe o n.º 1 do citado artigo 54.º do mesmo diploma legal, prosseguindo o desiderato da proteção do direito dos assinantes à portabilidade.

Ora, cremos bem que a obrigação de pagamento de compensação entre operadoras (diferente poderia ser o raciocínio nas compensações a assinantes) escapa, de todo o modo, à sobredita conformação legal de proteção do direito dos assinantes à portabilidade, porquanto tal proteção é conseguida com ou sem compensação entre operadoras, tendo em conta que o prestador doador só pode recusar nos casos expressamente previstos na lei (conferir artigo 13.º, do Regulamento de Portabilidade), onde se não encontra a possibilidade de recusar, caso o prestador recetor não proceda ao pagamento de compensação prevista.

Deste modo, no se pode concordar com o fundamento invocado pelo ICP-ANACOM - Autoridade Nacional de Comunicações de que as compensações em causa nos autos funcionam como mecanismo de defesa dos interesses dos assinantes e da correção do procedimento de portabilidade.

Está claro que a norma que estabelece as compensações entre operadoras tem um âmbito de proteção público, que se não confunde com qualquer mecanismo de compensação de autonomia e disponibilidade privada, mas daí não se retira que a sua violação importa a imputação de uma contraordenação.

É que nem mesmo um residual interesse mediato do consumidor se vislumbra da punição como contraordenação da falta de pagamento de compensação, porquanto a sua previsão é totalmente estranha ao desenvolvimento e consecução do pedido eletrónico de portabilidade.

Salvo melhor e mais douta opinião, não se admite que na expressão determinar as regras necessárias à execução da portabilidade possa conter-se como prática contraordenacional o não pagamento de importâncias pecuniárias entre operadoras.

Noutros termos se dirá que, se o bem jurídico protegido pela norma constante do artigo 113.º, n.º 1, alínea ll), da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro se antevê como evidente, já a respeito de uma pretensa contraordenação por falta de pagamento de compensação entre operadores de telecomunicações tal se afiguraria totalmente obscuro.»

8 - Como se vê, o ponto que justifica análise - por não ter sido objeto, como se disse, de anterior decisão deste Tribunal -, respeita à suscetibilidade legal da qualificação como contraordenação do incumprimento do dever de pagar compensações entre operadores em certos casos de incumprimento dos deveres impostos pela portabilidade.

No entendimento da recorrida:

«CC. A questão sob apreciação refere-se tão só e somente à obrigação de pagamento de uma determinada quantia, pré-determinada, por um operador a outro operador, quando se verifiquem atrasos no envio da documentação associada ao processo de portabilidade no prazo fixado no RP ou portabilidades indevidas.

[...]

EE. A falta de pagamento entre operadoras das compensações previstas no RP não importa a violação dos direitos dos assinantes de serviços telefónicos à portabilidade do seu número ou números de telefone: o pagamento de tais compensações é indiferente à efetivação de tal direito e relaciona-se com outras vertentes (interna entre operadores se se quiser) da portabilidade que não a portabilidade do número do assinante.»

Já para o representante do Ministério Público neste Tribunal:

«[...] as compensações estabelecidas inscrevem-se não no foro da autonomia privada, mas na área da proteção do interesse público (defesa da concorrência e proteção dos consumidores)

9 - Não oferece dúvidas a este Tribunal que o interesse subjacente às normas que impõem o dever de pagar compensações entre operadores por ofensa às regras de portabilidade é um interesse público - e um interesse público relevante.

A palavra portabilidade designa, no contexto das telecomunicações, o direito de mudar de operador de telefone fixo ou móvel, mantendo o mesmo número. Tratando-se de um «direito de mudar», é uma simples faceta da liberdade do consumidor de optar por um outro fornecedor de um qualquer serviço que seja prestado em regime concorrencial.

Num mercado pequeno, com um número restrito de operadores e com estes concorrendo entre si, por vezes de forma bastante agressiva, assegurar a liberdade de escolha do consumidor é absolutamente essencial. Daí as normas, legais e regulamentares, que se preocupam em garantir esta liberdade, prevenindo e reprimindo todas as formas de a cercear, promovendo dessa forma um interesse que ninguém contesta ser público. Claro que, neste contexto, o estabelecimento de contraordenações é um instrumento comum e indispensável.

Na tese veiculada pela decisão recorrida, o incumprimento do dever de pagar as compensações estabelecidas, independentemente da sua qualificação como público, apenas legitimaria o estabelecimento de contraordenações, no caso de as compensações em dívida serem devidas aos consumidores/assinantes. Já o não pagamento das compensações devidas entre operadores não poderia ser erigido em contraordenação porque, nas palavras da recorrida, o pagamento de tais compensações seria «indiferente à efetivação de tal direito» [refere-se ao direito do assinante à portabilidade].

10 - Esta posição não pode merecer acolhimento do Tribunal.

O processo de portabilidade é, utilizando a nomenclatura de inspiração italiana, um verdadeiro processo, e não apenas um procedimento. Nele avulta, mais do que a simples sucessão de atos e formalidades, um verdadeiro conflito de interesses entre operadores: o interesse do prestador doador ou detentor, em tudo fazer para ganhar um novo cliente, e o interesse do prestador recetor, em não perder tal cliente.

A lei considerou - e bem, pois só assim se defende e promove a concorrência - que deveria impor ao prestador recetor o dever de facilitar a concorrência, de alguma forma agindo contra os seus interesses (ciente de que beneficiará da mesma norma em futura situação inversa). Ora, a imposição a este do dever de envio ao prestador doador ou detentor de toda a documentação necessária para permitir a mudança de operador (é isto a portabilidade) - dever em cujo cumprimento a recorrida decaiu múltiplas vezes, sendo, por isso, condenada pela decisão recorrida - apenas é eficaz na medida em que do seu incumprimento possa resultar uma consequência económica desvantajosa para o operador relapso. Daí o mecanismo das compensações entre operadores.

Não é nada indiferente aos direitos dos consumidores que os operadores paguem ou não as compensações devidas a outros operadores. Se o não fizerem, os prestadores recetores poderão incumprir os deveres impostos pela portabilidade sem enfrentar consequências desfavoráveis. Ou seja: o cumprimento de tais compensações é um instrumento indispensável para garantir a portabilidade, que é, como se disse, um benefício dos consumidores. Como poderá ser-lhes indiferente?

Não se encontra, assim, razão bastante para justificar restrição feita na decisão recorrida, excluindo, por contrário à Lei Fundamental, o tratamento contraordenacional das ofensas ao dever de pagar as compensações devidas entre operadores.

No restante, não se vê razão para alterar a jurisprudência, já citada, deste Tribunal.

III - Decisão

Tudo visto e considerado, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não julgar inconstitucional a norma extraída da interpretação do artigo 113.º, n.º 1, alínea ll), e n.º 6, da Lei das Comunicações Eletrónicas, aprovada pela Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, (na redação resultante do Decreto-Lei n.º 176/2007, de 8 de maio, posteriormente modificada), em conjugação com o artigo 54.º, n.º 5, daquela mesma lei (na redação originária) e com o artigo 26.º, n.º 2, alínea c), e n.º 3, do Regulamento da Portabilidade, na redação alterada pelo Regulamento do ICP-ANACOM - Autoridade Nacional de Comunicações n.º 114/2012, de 13 de março, com o sentido de que as contraordenações a estabelecer por via de regulamento editado pelo regulador podem sancionar com coima o incumprimento da obrigação de pagamento das compensações devidas dentre operadores por ofensa das regras de portabilidade dos números de telefone; e, em consequência,

b) Ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com tal juízo.

Sem custas.

Lisboa, 8 de março de 2016. - João Pedro Caupers - Maria Lúcia Amaral - Teles Pereira - Maria de Fátima Mata-Mouros - Joaquim de Sousa Ribeiro.