Intervenção do Vice-presidente, Alberto Souto de Miranda, no seminário 'Ao Encontro dos Desafios sobre o Cibercrime' - 30 de Novembro de 2006


Exma Sra. Margaret Killerby, Directora do Departamento de Problemas Criminais do Conselho da Europa

Exmo Sr. Dr. Miguel Romão, Director do Gabinete para as Relações Internacionais, Europeias e de Cooperação do Ministério da Justiça

Queria em primeiro lugar saudar os promotores desta conferência internacional e dizer-vos que foi com muito gosto que a ANACOM se associou a este Seminário: reflectir sobre o cibercrime não é apenas oportuno e ingente do ponto de vista internacional e do amadurecimento que temos de fazer das nossas políticas legislativas, as mais das vezes desarmadas sob as surpresas diárias do futuro, mas é, também, um momento privilegiado de reflexão civilizacional.

Em boa hora, pois, o Ministério da Justiça e o Conselho da Europa levam a cabo esta iniciativa e queria cumprimentar, por isso, o Dr. Miguel Romão e a Sra. Margaret Killerby. Queria também dirigir uma especial saudação aos meus colegas das Autoridades Reguladoras de Telecomunicações dos Países de Expressão Oficial Portuguesas aqui presentes, com quem temos vindo a manter frutuosas relações de cooperação, que queremos intensificar.

Minhas Senhoras e Meus Senhores

Os tempos são de novos tempos. A nossa geração tem o privilégio imenso de testemunhar a mudança de paradigmas – alguns ancestrais – mas igualmente a angústia ética de ser agente e vítima dessas modificações inebriantes e vorazes, que tudo desactualizam e tornam obsoleto, que com toda a informação nos asfixiam, mas que todas as referências estiolam.

A aceleração da história é vertiginosa. Mudamos em dez anos matrizes que outrora perduravam cem. E os despistes e as tonturas do excesso de velocidade tecnológica e cultural podem acontecer. Porque o acesso sem limites à informação dificulta a triagem adequada à formação. E o drama é que ninguém tem certezas sobre qual é a formação adequada…

A comunicação universal tornou o espaço mais pequeno. Partilhamos mais facilmente as tradições culturais dos outros, nivelamos padrões comportamentais, mas também corremos o risco de tudo banalizar e de muita diversidade destruir. Em Schangai encontramos as mesmas lojas e marcas de Nova York, que reconhecemos também aqui no Chiado. O Google talvez dê imagens do Hotel 24 de Setembro em Bissau ou do Polana em Moçambique, mas muitos povos estão ainda sem janelas para o mundo e com muito poucas frestas para a esperança. Tudo ver, tudo mostra, mas tudo denuncia. E os olhares tornam-se diferentes. Desapareceram as fronteiras, as físicas, as judiciais, as culturais quase, as éticas esbatem-se, mas as religiosas, essas, acentuam-se dolorosamente.

O território deixou de ser o limite. As diferenças entre países ricos e pobres também se escancaram mais. No Portugal de 2006, sempre queixoso e maledicente de si mesmo, todas as crianças do 1ºciclo têm acesso à Internet nas escolas e temos mais telemóveis do que habitantes. Não é evidente que sejamos mais ricos por isso, mas lá que somos mais felizes por ter um telemóvel à mão para dizer mal do dono do telemóvel vizinho, lá isso somos…Mas a verdade é que o novo paradigma do homo connectus on line ainda não tranquilizou o homo sapiens e continua a permitir o homo horribilis do terrorismo mais cobarde e revoltante. Nem tudo é progresso ético nesta euforia de novíssimos meios.

Se bem avalio o que hoje nos reúne aqui, a conferência sobre cibercrime tem tudo a ver com isto. Novos instrumentos de crime para crimes clássicos, crimes novos, soberanias territoriais impotentes, criminosos em rede que desafiam o Estado e o conceito de Estado, um Estado “big brother is watching you”, nas ruas, nos telefones (“big brother is hearing you”) escutados despudoradamente sem controlo, vigiados cada cinco metros do meu automóvel seguidos por satélite e eu a assistir no telemóvel, racismos ignóbeis, intolerâncias religiosas propagadas, fanatismos demenciais, gente sem rosto e sem honra que atenta contra os bens e o bom nome das pessoas, gente sem escrúpulos que manipula dados e notícias, que fabrica as caras e os corpos e os factos em ilusões em que a verdade não tem lei e a impunidade grassa, cooperação sem fronteiras para criminosos sem terra e em que o criminoso e o detective têm dificuldade em encontrar o local do crime. Algures na rede. Sem impressões digitais. Suprema ironia do destino digital. A desmaterialização do local do crime, da arma, da vítima, novas inconsciências da ilicitude versus dolos fanáticos e sofisticados. Regras substantivas e processuais inoperantes. Qual é a nossa medida da culpa?

É por tudo isso que os trabalhos da Convenção da Europa e da União Europeia nestas matérias são importantes: estabelecem um novo quadro para integrar novas realidades e um contexto de cooperação internacional aberto a todos, que é imprescindível, se queremos ser eficazes na luta contra o cibercrime.

Porque o novo paradigma da comunicação universal simultânea coloca problemas inesperados ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal. São valores fundamentais que estão a ser postos em causa. Já não é só a arma do crime que evoluiu. São os valores e os desvalores que sentimos. Por exemplo, os downloads de músicas e filmes ainda serão crime? Os blogues caluniadores e anónimos serão apenas uma nova forma de escrever nas paredes da aldeia de Garcia Marquez os boatos que minam a honradez da comunidade? Ou será algo mais? Estamos a ficar anómicos? Mas deveremos ser repressivos? Qual é o justo quantum? Porque a democracia e os nossos direitos fundamentais devem ser exigidos e defendidos em todos os suportes de comunicação. Mas até onde devemos ir perante o ruir das torres gémeas ou perante a devassa de escândalos indiciadores como o do envelope 9?

Minhas Senhoras e Meus Senhores

Queremos que a nossa Sociedade da Informação seja também uma sociedade do conhecimento. Porque a mera informação pode esmagar, mas o conhecimento liberta. Claro que, num contexto de carências e de iliteracia ainda significativas, o prover a níveis de oferta das novas TIC é essencial. A ANACOM assumirá as suas responsabilidades para que a infoexclusão não formate um Portugal a duas velocidades: para uns 24 Mega e televisão digital e no telemóvel, para outros a idade da televisão a preto e branco e sem telecomando. Mas não tenhamos ilusões: o essencial não são os computadores e as máquinas. O essencial é a educação das pessoas. Não vale a pena oferecermos portas para o mundo se as pessoas não souberem utilizar as chaves e, pior do que isso, se espreitando lá para dentro, não compreenderem o que vêem e em que medida é que lhes pode ser útil e ajudar a serem melhores. A melhor medida para combater o cibercrime é a educação. Mas o paradoxo disto é que o ciber criminoso não é um infoexcluído, pelo contrário é um infohiperincluído…


Minhas Senhoras e Meus Senhores

No quadro das suas atribuições e competências, a ANACOM pode impor aos operadores de redes e serviços de comunicações electrónicas que garantam a privacidade e impeçam a devassa de dados pessoais (art.27 do Regicom), que instalem, a expensas próprias, e disponibilizem sistemas de intercepção legal às autoridades nacionais competentes, bem como meios de desencriptação ou decifração e pode ainda impor restrições relativamente à transmissão de conteúdos ilegais. Além disso, podemos igualmente assegurar que seja mantida a integridade e a segurança das redes de comunicações públicas, sendo certo que todas as medidas e decisões a adoptar devem ser razoáveis e proporcionais aos objectivos de regulação estabelecidos.

A conformidade do direito nacional com as disposições da Convenção sobre o Cybercrime deve ter sido escrutinada neste seminário. A tipificação penal dos atentados contra a confidencialidade, a integridade e a disponibilidade de dados e sistemas informáticos, as práticas de falsidade e de burla informática, a repressão da pornografia infantil, a violação dos direitos de autor e direitos conexos, a responsabilização de pessoas colectivas, a obrigatoriedade de conservação expedita de dados e de divulgação de dados relativos ao tráfego, os poderes de busca e apreensão de dados armazenados, a recolha dos mesmos em tempo real, o interceptar dados relativos ao conteúdo e a intensificação de procedimentos eficazes de cooperação entre autoridades estaduais, a Convenção estabelece metas essenciais para a o combate ao cibercrime.

Combater o cibercrime é defender a democracia e os Direitos do Homem. E ele combate-se melhor se estivermos internacionalmente unidos, se estivermos em rede.

No quadro da União Europeia, na sequência da Declaração sobre o combate ao terrorismo de 25 de Março de 2004, o Conselho Europeu tem em preparação um Decisão Quadro relativa à conservação de dados tratados e armazenados em ligação com a oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis para efeitos de prevenção, investigação, detecção e instauração de acções penais, incluindo terrorismo.

Estou certo que este seminário terá contribuído significativamente para uma avaliação dos caminhos que estão a ser trilhados. A reflexão conjunta sobre o equilíbrio que tem de existir entre as novas armas normativas e os limites impostos pela salvaguarda da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o novo modelo de investigação transeuropeia e universal, a adequação ou a obsolescência dos nossos sistemas penais e judiciários e de polícia científica para reagir eficazmente a estes hodiernos e odiosos cibercrimes, tudo isso é essencial para a afirmação da cidadania. O ciberespaço não pode ser uma fronteira para a cidadania. Pelo contrário, deve poder fortalecê-la, enquanto tempo para os cidadãos do mundo.

A ANACOM saberá assumir as suas responsabilidades.
Muito Obrigado pelos Vossos contributos.

Lisboa, 30 de Novembro de 2006

Alberto Souto de Miranda